sexta-feira, 3 de abril de 2015

A cunha

Folha de S. Paulo, 2 de abril de 2015.

Frei Betto

A cunha renana

Já que preferiu governar pelo andar de cima, o PT, sitiado por Cunha e Renan, sabe que terá de continuar negociando seus princípios e projetos
Na Roma antiga, as legiões adotavam diferentes formações militares. Uma delas era a cunha, quando as tropas se moviam em forma de triângulo para encurralar os adversários. A Renânia é hoje a região mais industrializada da Alemanha.
O Tratado de Versalhes (de 1919) a desmilitarizou. Adolf Hitler, porém, violou o tratado e a ocupou com suas tropas. Criou a cunha renana que, ao longo do rio Reno, tinha a função de acuar os inimigos.
O Brasil conhece, agora, sua cunha renana. Tem como vértice o PMDB e amplia o cerco sobre o PT e força o recuo do Executivo.
A brincadeira acabou. O Congresso Nacional já não faz o que o mestre mandar. Sobretudo porque, diante dos escândalos de corrupção, o mestre já não manda as benesses que, antes, quebravam resistências e ampliavam o leque de aliados. Ora, não é porque as vacas estão magras que os bezerros deixam de querer mamar.
Antigos palácios eram cercados, como proteção, por fossos repletos de crocodilos. Hoje, o fosso é político. O Palácio do Planalto, convencido de que todo poder emana do núcleo duro do governo, perdeu a sintonia com o Congresso. E também com o Judiciário, uma das arestas que formam a cunha renana.
Na praça dos Três Poderes não há indícios de que Suas Excelências têm olhos e coração voltados para o Brasil. O foco são as eleições de 2018. O PMDB, como me confessou um de seus dirigentes, cansou de ser acólito do PT. Não se sente devidamente recompensado em número e importância de ministérios. Nem quer ajudar a carregar o pesado piano do ajuste fiscal depois que cessou a música da gastança.
Já que escolheu assegurar sua governabilidade pelo andar de cima (mercado e Congresso Nacional), o PT, sitiado pela cunha renana, sabe que continuará a ser obrigado a negociar seus princípios e projetos. Leia-se: abdicar de seus propósitos originários.
Ainda mais agora que se distanciou do andar de baixo, quer dizer, dos movimentos sociais, e já não faz trabalho político de base. Conta com filiados e eleitores, não mais com militantes.
A cunha renana, sem dúvida, prosseguirá seu avanço até transformar o Planalto em planície --terra arrasada. Haja vice para tentar salvar a aliança inconsútil.
O Planalto sabe que há luz no fim do túnel: os segmentos organizados da expressiva parcela de eleitores que elegeu o atual governo.
Porém, por insensibilidade ao andar de baixo, alvo de políticas sociais e, no entanto, escanteado de participação nas decisões de governo, dificilmente ousará acender a luz no fim do túnel. Não acredita que ela seria capaz de ofuscar a cunha renana e obrigá-la ao recuo.
E lembrar que o partido que agora pensa em se reinventar ou refundar nasceu como expressão política dos pobres, baluarte ético e socialista, e criou as prévias eleitorais interpartidárias, o orçamento participativo, os núcleos de base e a consulta popular.
CARLOS ALBERTO LIBANIO CHRISTO, 70, Frei Betto, é assessor de movimentos sociais e escritor. É autor de "A Mosca Azul - Reflexão sobre o Poder" (Rocco), entre outros livros

sexta-feira, 6 de março de 2015

Gatilhos

Blog do Noblat


Uma democracia que vive de gatilhos

Nosso estado democrático de direto tem sofrido muito nestes tempos. As instituições não mais disciplinam a luta pelo poder
Renan Calheiros (Imagem: Fabio Rodrigues Pozzebom /Agência Brasil)
Pode o  presidente do Senado  recursar sozinho uma medida provisória ?

O senador Renan Calheiros devolveu a medida provisória de desoneração fiscal sob o argumento de que matéria fiscal não se configura nem relevante, nem urgente. O Congresso nem aprovou, nem desaprovou. Apenas recusou-se a apreciar. Pode?
Nas medidas provisórias 22, 232, 135 e 275, por exemplo, de Fernando Henrique e Lula, todas sobre tributos, na mesma situação de hoje, o Congresso aceitou decidir e decidiu. Aprovou as duas primeiras e rejeitou as últimas. Ou seja, a prática da Casa de ontem, não ajuda a decisão do senador Renan de hoje.
Considerar como urgente e relevante o que não é, deturpa a relação entre os poderes da República. É o mau uso das medidas. Mas todos os presidentes da República, desde 1988 o fizeram. E todos os presidentes do Congresso compactuaram com esta deturpação.
Só uma vez, em 2008, Garibaldi Alves devolveu como não urgente, nem relevante uma medida provisória que tratava de filantropia. Aceitá-la já seria deturpação demais.
O que alimenta esta deturpação é o Congresso não decidir no tempo das necessidades da administração federal. Parece que estamos numa democracia de “urgências”. Não vem de hoje.
No regime militar havia o decurso de prazo. Se o Congresso não decidisse em sessenta dias, a matéria estava automaticamente aprovada. Desequilibrava o processo legislativo nacional em favor do Executivo.
Para recusar a MP 669/15, o Senador Renan usou de seu poder discricionário. Discricionário, segundo o Aurélio, é aquilo que é “livre de condições. Ilimitado”.
Segundo a doutrina jurídica, é o espaço de liberdade para avaliar se existe ou não conveniência e oportunidade para dizer sim, ou não.
Mas o que é urgência e relevância? São critérios fluidos que no fundo criam um espaço decisório de liberdade para o agente público.
Esta fluidez pode ser usada para avançar interesses próprios ou partidários ou para evidenciar critérios objetiváveis. Hoje, o autoritarismo ou a democracia se escondem dentro desta fluidez.
Os limites, justificativas e transparência da discricionariedade são hoje a questão fundamental da democracia. Mais do que a própria separação de poderes.
Em muitos casos, a conveniência e oportunidade tem se fundamentado na convicção pessoal ou de interesse político decisório, e que não tem nada a ver com a medida proposta.
Donde a pergunta inicial que fazemos é outra. Pode o Presidente do Senado usar da discricionariedade que a lei lhe confere para implementar uma estratégia política muito além da matéria da medida provisória? Pode o Executivo mandar como Medida Provisória, o que não é?
Nosso estado democrático de direto tem sofrido muito nestes tempos. As instituições não mais disciplinam a luta pelo poder.
Às vezes se tem a impressão que nossa democracia vive, como dizem os engenheiros elétricos, de gatilhos.

terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

Rumo ao impeachment?

Folha de S. Paulo, 25 de fevereiro de 2015.

Alberto Goldman

O impedimento e o desafio da oposição

Os resultados eleitorais foram colhidos, o que não garante ser possível conduzir o país, fazendo o necessário para que ele possa avançar
Estamos iniciando um longo e dramático período político em nosso país. Longo, porque o mandato presidencial é de quatro anos. Dramático, porque Dilma Rousseff e seu partido não têm condições políticas e morais para conduzir o país por mais muito tempo.
Para não se apresentar confessando o estelionato eleitoral, Dilma entregou à nova equipe econômica a missão de implantar medidas de sacrifício da população --que durante a campanha eleitoral dizia que a oposição imporia à nação--, na busca desesperada de superar a estagnação produzida por sua política desastrosa.
Sem autocrítica, pelo contrário, em uma atitude covarde, procura arrastar o PSDB para o mar de lama em que está metida, ao afirmar que, se antes tivesse o governo FHC investigado e punido, não teríamos o que temos agora.
Esconde a sua responsabilidade na articulação de diretores da Petrobras e de seus fornecedores com os partidos de sua base, que objetivou o saque de recursos públicos para suas campanhas (e o enriquecimento de muitos) --o que, agora, emerge de maneira avassaladora.
É isso que destrói toda e qualquer condição moral de condução do país por parte da presidente Dilma Rousseff e seu ministério.
Dilma tratou de montar um ministério com figuras que representam agrupamentos partidários ou grupos de interesse que possam lhe dar o respaldo necessário no Congresso Nacional, para evitar um possível pedido de seu afastamento definitivo do cargo, nos termos da Constituição em vigor, uma sobrevida difícil de obter.
O governo petista está moribundo, e o partido continuará existindo como uma pálida imagem do que já foi no passado, quando, moralmente inatacável, pretendia ser o condutor de uma transformação profunda na sociedade brasileira.
No governo, liderado pelo seu grande chefe, Luiz Inácio Lula da Silva, o PT se corrompeu ao buscar, a qualquer preço, a manutenção do poder. O projeto de uma nova sociedade se frustrou, transformando-se em projetos de subsistência de milhões de brasileiros que vivem na pobreza, mantidos nessas condições para garantir o controle dos seus votos. Não passa disso.
Os resultados eleitorais foram colhidos, mas isso não garante ser possível conduzir o país, fazendo as transformações necessárias para que ele possa avançar econômica, social e politicamente.
Pelo contrário, a forma como esses resultados foram obtidos impõe à presidente e ao seu partido a necessidade de se legitimar perante a maioria do Brasil produtivo, que não vive na dependência do Estado. Tarefa impossível.
O quadro atual é dramático também para a oposição e para os milhões de brasileiros que não veem no governo atual condições para vencer a crise.
Como levar adiante uma transição nos limites da democracia constitucional em que vivemos, rejeitando firmemente qualquer solução que não seja legal, sem ter de aguardar quatro anos para que o país possa abraçar um caminho que abra novas perspectivas de desenvolvimento e de melhoria das condições de vida de nosso povo? Esse é o desafio que está colocado para nós.
Sobra o caminho legal do impedimento, que só acontecerá se o agravamento das condições econômicas e políticas persistirem a ponto de mobilizar o povo e os partidos para uma solução que, de qualquer forma, ainda que legal e democrática, não deixa de ser traumática.
Mas o próprio Lula já declarou, após a queda de Collor, que o povo brasileiro mostrou que o mesmo povo que elegeu um presidente pode tirá-lo. E pode, legalmente!
Pode não haver outra saída.
ALBERTO GOLDMAN, 77, vice-presidente nacional do PSDB, foi governador de São Paulo (2010)

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

Amigo/inimigo

Folha de S. Paulo, 18 de fevereiro de 2015.

Clóvis Rossi

Amigo, inimigo e democracia

Argentina vive período de crispação política terrível; é tudo o que o Brasil não precisa importar
Era uma vez um tempo em que os argentinos --principalmente, mas também outros latino-americanos-- usavam a expressão "ruídos de sabre" para designar movimentos pré-golpistas nas Forças Armadas.
Agora que os sabres, felizmente, foram embainhados, e Deus queira que nunca mais saiam da quietude, os ruídos que se ouvem também são de golpe.
É o que está ocorrendo na Argentina como efeito colateral da marcha convocada pelos promotores para pedir o esclarecimento definitivo e cabal da morte de seu colega Alberto Nisman.
É aquele que denunciou a presidente Cristina Kirchner por, supostamente, ter participado de um esquema para encobrir a participação de agentes iranianos no atentado contra uma entidade judaica que causou 85 mortos --o maior atentado terrorista da história latino-americana.
Para os partidários da presidente, reunidos, por exemplo, no coletivo "Carta Abierta", trata-se do ato de um "partido judicial em gestação, que parece cumprir o papel desestabilizador que em outros tempos cumpriram as Forças Armadas".
Rebate, na oposição, por exemplo, o ex-deputado Fernando Iglesias, fundador do grupo "Democracia Global", que, em artigo para "La Nación", diz que o "kirchnerismo combina elementos democráticos com ditatoriais" e emenda que o caso Nisman somou a esses elementos um outro, "característico de toda ditadura: quem desafia o poder morre violentamente".
Não surpreende, pois, que o jornalista Carlos Gurovich, judeu argentino que emigrou para Israel e é produtor da TV "i24 News", compare o momento atual a um mergulho no passado, mais exatamente nos sangrentos anos 70 --anos que os sabres eram desembainhados com notável facilidade e ferocidade.
Como tenho amigos nos dois lados da guerra de ruídos, é sempre desconfortável escrever sobre a Argentina. Mas o sentido comum manda concordar com o promotor Ricardo Sáenz quando ele diz a Mariana Carneiro, desta Folha, que o que está havendo "é uma lógica de amigo e inimigo que não beneficia em nada a sociedade e muito menos o Poder Judiciário". Bingo.
Essa lógica perversa é uma criação do kirchnerismo, em especial de Cristina (Néstor era mais flexível).
Como afirma Gurovich, "Kirchner e seus acólitos não querem aceitar nenhum outro ponto de vista ou realidade que não seja a que criaram, e qualquer um que discorda é acusado de querer destruir o projeto deles para uma nova Argentina".
Como já passei faz tempo da idade da inocência, não acredito mais nem em projetos salvacionistas nem em que a oposição a eles esteja pensando apenas no bem da pátria.
Por esse ceticismo, me surpreende que o Brasil esteja importando essa dualidade "amigo/inimigo", essa ideia de que há um bando disposto a salvar a pátria contra outro que quer enterrá-la, o bem contra o mal.
Essa lógica emburrece, como se viu na recente campanha eleitoral. Lástima é que esteja persistindo mesmo depois dela.
O país já tem problemas demais para agregar a eles uma crispação política absurda.

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

"golpismo daquelas elites"

"Resolução Política
Reunido em Belo Horizonte, no dia 6 de fevereiro de 2015, nas comemorações dos 35 anos do Partido dos Trabalhadores, o Diretório Nacional resolve:
Expressar ampla solidariedade e defender o governo da presidenta Dilma contra os ataques da oposição de direita.
Condenar a ofensiva e denunciar as tentativas daqueles que investem contra a Petrobrás, pois, a pretexto de denunciar a corrupção que sempre combatemos, pretendem, na verdade, revogar o regime de partilha no pré-sal, destruir a política de conteúdo nacional e, inclusive, privatizar a empresa. É nosso dever fortalecer a Petrobrás e valorizar seus trabalhadores. É nossa tarefa também defender a democracia e as conquistas do povo, denunciar as tentativas de desqualificar a atividade política e de criminalizar o PT.
Reafirmar o posicionamento adotado em Fortaleza em dezembro último, de apoiar as investigações em curso sobre a corrupção na Petrobrás e exigir que elas sejam conduzidas rigorosamente dentro dos marcos legais e não se prestem a ser instrumentalizadas, de forma fraudulenta, por objetivos partidários.
O PT reafirma a disposição firme e inabalável de apoiar o combate à corrupção.
Qualquer filiado que tiver, de forma comprovada, participado de corrupção, deve ser expulso.
Conclamar a militância a contribuir para a criação de uma articulação permanente de partidos, organizações, entidades – uma força política capaz de ampliar nossa governabilidade para além do Parlamento e de criar condições para realizar reformas estruturais no País;
Reforçar as campanhas pela reforma política e pela democratização da mídia. Frente ao permanente flerte com o golpismo daquelas elites que não conseguem vencer e nem convencer pelas ideias, o PT deve tomar a iniciativa de propor a unificação das propostas democráticas pela reforma política e construir uma ampla mobilização social para formar em torno da reforma política democrática uma vontade majoritária na sociedade. Partindo da proibição do financiamento empresarial e da garantia do financiamento público, buscaremos construir uma plataforma unitária na qual seja incorporada o voto em lista preordenada e paritária em termos de gênero. Além disso, o DN apoia a declaração de inconstitucionalidade do financiamento empresarial às campanhas eleitorais em curso no Supremo Tribunal Federal.
Apoiar a engajar a militância em mobilizações sociais, a exemplo das jornadas convocadas pela CUT e na organização do 1o. de Maio;
Propor ao governo que dê continuidade ao debate com o movimento sindical e popular, no sentido de impedir que medidas necessárias de ajuste incidam sobre direitos conquistados – tal como a presidenta Dilma assegurou na campanha e em seu mais recente pronunciamento. Nesse sentido, é necessário formalizar o processo de diálogo tripartite entre governo, partido e movimento sindical e popular, principalmente no que se refere às Medidas 664 e 665, bem como a definição de uma agenda comum pelas reformas democrático-populares;
Recolocar na ordem do dia a necessidade de aprovar a criação de um imposto sobre grandes fortunas;
Incentivar o debate sobre a necessidade de buscar novas fontes de receita para financiar projetos sociais e investimentos em infraestrutura, o que implica reformar o atual sistema tributário -- desigual, injusto e regressivo, pois grava a produção, os salários e o consumo popular, ao passo que poupa a riqueza, o patrimônio e a especulação;
Preparar o partido para a disputa das eleições municipais de 2016, recuperando a importância de difundir o modo petista de governar;
Convocar o conjunto da militância a engajar-se nos debates do 5o. Congresso, que será também aberto à participação de simpatizantes. O PT só ganha sentido se ele for expressão de suas bases, que devem ser ouvidas sempre para decidir os rumos do partido.
Por fim, no curso desta celebração histórica do nosso 35o. aniversário, saudamos o heroísmo do povo cubano que, por sua resistência, começa a quebrar o bloqueio imposto durante décadas pelo imperialismo. Saudamos também a vitória do novo primeiro-ministro da Grécia, Alexis Tsipras, do Syriza, derrotando a política de austeridade fiscal, a quem desejamos êxito em sua batalha contra as políticas neoliberais que vêm revogando direitos e promovendo recessão e desemprego na Europa. Congratulamo-nos, ainda, com o presidente da Bolívia, Evo Morales, que há pouco iniciou seu novo mandato presidencial – conosco irmanado na luta internacionalista, especialmente na integração latino-americana e caribenha.
Belo Horizonte/MG, 06 de fevereiro de 2015
Diretório Nacional do Partido dos Trabalhadores"

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

Freddie Mercury e Pepe Legal

Folha de S. Paulo, 5 de fevereiro de 2015.

A falência e o deboche

Sejamos absolutamente francos: o Brasil é uma ruína (ou, na melhor das hipóteses, está uma ruína).
Um país na iminência do racionamento de água e de energia elétrica encontra-se em estado falimentar. Mas, se fosse apenas uma crise hídrica e/ou energética, ainda dava para acreditar que Deus, tido como cidadão brasileiro, daria um jeito, mandando chuva suficiente para abastecer os reservatórios.
Acontece que a ruína é também moral/ética, econômica, social, política, de ideias, de tudo, a rigor.
Para não voltar muito ao passado, examinemos rapidamente o cenário econômico, tal como lembrado por Delfim Netto, na sua coluna desta quarta-feira (4), na Folha.
"Não é possível ignorar que em 2014, quando a única preocupação do governo foi a sua vitória numa intensa e cruel campanha eleitoral, as consequências foram muito ruins: deficit primário de 0,6% do PIB; deficit fiscal total de 6,7% do PIB; gasto com juros para o pagamento da dívida de R$ 250 bilhões, em torno de 5% do PIB, acompanhados por um aumento da relação dívida pública bruta/PIB para 63,4% do PIB, por uma taxa de inflação de 6,41% e por um surpreendente deficit em conta corrente de US$ 91 bilhões, 4,2% do PIB".
Faltou dizer que o crescimento, se for zero, será um bom resultado.
Passemos para outra ruína, a ética, e citemos outro colunista da Folha, Matias Spektor:
"Estima-se que a roubalheira envolvendo cofres públicos tenha custado até 5% do PIB só na última década. E quando Collor foi posto para fora, em 1992, o índice de confiança nos políticos era de 31%.
Treze anos depois, durante o mensalão, era de apenas 8%".
Spektor lembra que ainda está para ser contabilizado o pai de todos os escândalos, o "petrolão".
Digo o pai de todos porque é o primeiro, pelo menos até onde vai minha memória (que é de longo alcance), em que foram para a cadeia executivos de grandes empresas.
Ou seja, é uma das primeiras vezes em que são apanhados não apenas os corruptos de costume (em geral funcionários públicos ou políticos) mas também os corruptores (o lado privado da corrupção).
Nesse cenário, o que se poderia esperar da classe dirigente seriam demonstrações de preocupação, a busca urgente de respostas, providências capazes de estancar uma e outra sangria.
O que se viu, no entanto, neste domingo, foi o deboche.
Pelo excelente relato de Bruno Boghossian, na festa da vitória de Eduardo Cunha (ela, em si, já é um deboche), os dois principais articuladores políticos do governo foram ridicularizados.
Aloizio Mercadante (Casa Civil) foi chamado de Freddie Mercury, vocalista já morto do grupo Queen, pelo seu bigode, ao passo que Pepe Vargas (Relações Institucionais) virava Pepe Legal, o desastrado personagem de desenho animado.
Quando o deboche se dá entre companheiros de base governista, tem-se um retrato acabado da ruína política em que se encontra a pátria amada.
Tudo somado, o fato é que três ruínas combinaram encontro neste fevereiro.

O ovo da serpente?

Folha de S. Paulo, 5 de fevereiro de 2015.

Parecer flerta com golpismo, diz petista

Análise sobre viabilidade de eventual pedido de impeachment de Dilma foi encomendada por advogado de FHC
Presidente do PT afirma não haver base jurídica, mas internamente classifica documento como 'ovo da serpente'
DE BRASÍLIA O presidente do PT, Rui Falcão, classificou de "flerte com o golpismo" o parecer jurídico que afirma haver fundamentos para pedido de impeachment da presidente Dilma Rousseff por causa do escândalo da Petrobras.
"Não vejo nem base jurídica nem base política para isso. A presidente Dilma foi eleita e está conduzindo o país conforme o programa vitorioso nas urnas. Essas tentativas que são aqui ou ali ensaiadas, de flerte com o golpismo, não levo a sério porque a população brasileira está muito firme com a ideia da democracia. São chuvas de verão", afirmou o petista.
Conforme a Folha revelou nesta quarta (4), o parecer em questão foi produzido pelo advogado Ives Gandra da Silva Martins por solicitação de José de Oliveira Costa, que advoga para o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), do PSDB.
Costa nega que o documento tenha caráter político. Diz que o encomendou o parecer a partir da dúvida sobre se é possível iniciar um processo de impedimento por responsabilidade civil. Segundo ele, a peça seria usada se algum cliente que tivesse essa mesma dúvida.
'OVO DA SERPENTE'
Falcão comentou o caso com a imprensa após reunião com a bancada de deputados federais do partido.
Segundo relato de parlamentares que estavam no encontro, a portas fechadas ele classificou o parecer como "ovo da serpente" a ser combatido pela militância petista.
O parecer de Martins conclui que há elementos para que seja aberto o processo de impeachment por improbidade administrativa "não decorrente de dolo [intenção], mas de culpa". Culpa, em direito, escreve Martins, são as figuras da "omissão, imperícia, negligência e imprudência".
Um dos principais temores do Planalto é que o presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), que nunca teve boa relação com o governo, dê sequência a eventual pedido de impedimento de Dilma.

Golpe paraguaio?


http://noticias.r7.com/blogs/ricardo-kotscho/2015/02/04/fhc-da-bandeira-golpe-paraguaio-esta-em-marcha/

Publicado em 04/02/15 às 10h41

FHC dá bandeira: golpe paraguaio está em marcha

Foi dada a largada. Em caudaloso artigo publicado domingo no Estadão, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso deu a senha: como não há clima para um golpe militar, a derrubada do governo de Dilma Rousseff deve ficar por conta do Judiciário e da mídia, criando as condições para votar o impeachment da presidente no Congresso Nacional o mais rápido possível.
"Que tenham a ousadia de chegar até aos mais altos hierarcas, desde que efetivamente culpados", conclamou FHC. O ex-presidente já vinha conversando sobre isso com outros tucanos inconformados, ainda discretamente, desde a noite da vitória de Dilma, no segundo turno, em outubro do ano passado. Sem paciência para esperar as próximas eleições presidenciais, em 2018, após quatro derrotas seguidas, FHC, aos 83 anos, resolveu colocar o bloco na rua e convocou a tropa, sem medo de dar bandeira.
O primeiro a responder prontamente ao chamado foi o sempre solícito advogado Ives Gandra Martins, 79 anos, que já na terça-feira apresentou a receita do golpe no artigo "A hipótese de culpa para o impeachment", publicado pela Folha, em que o parecerista aponta os capítulos, parágrafos, artigos e incisos para tirar Dilma da presidência da República pelas "vias legais".
Candidamente, Martins explicou na abertura do seu texto: "Pediu-me o eminente colega José de Oliveira Costa um parecer sobre a possibilidade de abertura de processo de impeachment presidencial por improbidade administrativa, não decorrente de dolo, mas apenas de culpa. Por culpa, em direito, são consideradas as figuras de omissão, imperícia, negligência e imprudência".
E quem é o amigo José de Oliveira Costa, de quem nunca tinha ouvido falar? Graças ao repórter Mario Cesar Carvalho, da Folha, ficamos sabendo nesta quarta-feira a serviço de quem ele está nesta parceria com o notório Gandra Martins, membro atuante da Opus Dei e um dos expoentes da ala mais reacionária da velha direita paulistana .
"Sou advogado dele", explicou Costa ao repórter, referindo-se, também candidamente, ao seu cliente Fernando Henrique Cardoso, um detalhe que Martins se esqueceu de apresentar na justificativa do seu parecer a favor do impeachment de Dilma.
Conselheiro do Instituto FHC, o até então desconhecido advogado negou, porém, que a iniciativa da dupla tenha qualquer caráter político. FHC, claro, disse que só ficou sabendo da operação pelo jornal. São todos cândidos, esses pândegos finórios, que estão brincando com fogo, em meio à mais grave crise política e econômica vivida pelo país desde a redemocratização.
Para saber com quem estamos lidando, o currículo acadêmico de Ives Gandra Martins, um advogado tributarista, apresenta assim o autor, no rodapé do artigo: "professor emérito da Universidade Mackenzie, da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército e da Escola Superior de Guerra". Universidade Mackenzie, só para lembrar, foi o berço do CCC, o Comando de Caça aos Comunistas, que teve papel de destaque nos embates pré e pós-golpe de 1964.
Juntando as pontas, temos a montagem da versão nativa-chique do "golpe paraguaio". Sem a participação de militares, em junho de 2012, um processo jurídico-midiático-parlamentar relâmpago derrubou o presidente Fernando Lugo, democraticamente eleito, como Dilma. A favor do impeachment, a goleada foi acachapante: 39 a 4, no Senado, e 73 a 1, na Câmara.
Vejam a escalada da marcha aqui:
* Domingo, 1º _ O artigo de FHC dando as coordenadas à tropa: "Neste momento", o impeachment, "não é uma matéria de interesse político". Qual será o momento certo? É só uma questão de tempo para algo já dado como inexorável, como se fosse a coisa mais natural do mundo derrubar uma presidente eleita?
No mesmo dia, a presidente Dilma Rousseff sofreria a maior derrota política no Congresso Nacional, desde a primeira posse, com a eleição para a presidência da Câmara do deputado dissidente Eduardo Cunha (PMDB-RJ), um desafeto do seu governo, que se transformou em líder suprapartidário da oposição. Rachou e derreteu a ampla maioria que a base aliada tinha na Câmara, a nova articulação política do governo revelou-se um desastre e o PT ficou isolado, assim como Dilma já estava.
*Terça, 3 _ O artigo-parecer de Ives Gandra Martins, atendendo à convocação de FHC. "Meu parecer é absolutamente técnico. Para mim, é indiferente se o cliente é o Fernando Henrique Cardoso ou uma empreiteira", explicou o advogado. Claro, claro, tanto faz. Mas quem é, afinal o cliente? Quem pagou a conta? Candidatos a assumir esse papel certamente não faltam.
À tarde, Dilma acertou, finalmente, para os próximos dias, a saída de Graça Foster e de toda a diretoria da Petrobras, após ver durante meses a maior empresa do país sangrando em praça pública. Falta encontrar quem aceite assumir a herança. A produção industrial sofre queda de mais de 3% em 2014, os grandes bancos anunciam lucros recordes e o governo estuda parcelar em 12 vezes o abono de um salário para quem ganha até dois mínimos.
A verdade  é que Dilma também não ajuda nada na defesa do seu governo. Ao contrário, só leva água ao moinho dos conspiradores que estão saindo da toca.
Para completar, à noite, como já era esperado desde domingo e admitido por Eduardo Cunha, a oposição, com o apoio de 186 deputados, protocolou na Câmara o pedido para a instalação de uma nova CPI da Petrobras.
Está pronto o roteiro para os historiadores do futuro montarem a gênese deste dramático início do governo Dilma 2. O "golpe paraguaio" está em marcha, à espera das "condições objetivas", como diriam os cientistas políticos nos tempos em que FHC era só professor.
A seguir nesta batida, se nada mudar na condução do governo, o desfecho certamente não será bom nem bonito para a democracia brasileira.

 

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

Impeachment de Dilma?

"A hipótese de culpa para o impeachment". Por Ives Gandra da Silva Martins*

À luz de um raciocínio exclusivamente jurídico, há fundamentação para o pedido de impeachment da presidente Dilma Rousseff
Artigo publicado originalmente na Folha de S. Paulo, Tendências/Debates, edição de 3 de fevereiro de 2015

Pediu-me o eminente colega José de Oliveira Costa um parecer sobre a possibilidade de abertura de processo de impeachment presidencial por improbidade administrativa, não decorrente de dolo, mas apenas de culpa. Por culpa, em direito, são consideradas as figuras de omissão, imperícia, negligência e imprudência.

Contratado por ele --e não por nenhuma empreiteira-- elaborei parecer em que analiso o artigo 85, inciso 5º, da Constituição (impeachment por atos contra a probidade na administração).

Analisei também os artigos 37, parágrafo 6º (responsabilidade do Estado por lesão ao cidadão e à sociedade) e parágrafo 5º (imprescritibilidade das ações de ressarcimento que o Estado tem contra o agente público que gerou a lesão por culpa --repito: imprudência, negligência, imperícia e omissão-- ou dolo). É a única hipótese em que não prescreve a responsabilidade do agente público pelo dano causado.

Examinei, em seguida, o artigo 9º, inciso 3º, da Lei do Impeachment (nº 1.079/50 com as modificações da lei nº 10.028/00) que determina: "São crimes de responsabilidade contra a probidade de administração: 3 - Não tornar efetiva a responsabilidade de seus subordinados, quando manifesta em delitos funcionais ou na prática de atos contrários à Constituição".

A seguir, estudei os artigos 138, 139 e 142 da Lei das SAs, que impõem, principalmente no artigo 142, inciso 3º, responsabilidade dos Conselhos de Administração na fiscalização da gestão de seus diretores, com amplitude absoluta deste poder.

Por fim, debrucei-me sobre o parágrafo 4º, do artigo 37, da Constituição Federal, que cuida da improbidade administrativa e sobre o artigo 11 da lei nº 8.429/92, que declara: "Constitui ato de improbidade administrativa que atente contra os princípios da administração pública ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade e lealdade às instituições".

Ao interpretar o conjunto dos dispositivos citados, entendo que a culpa é hipótese de improbidade administrativa, a que se refere o artigo 85, inciso 5º, da Lei Suprema dedicado ao impeachment.


… "Como a própria presidente da República declarou que, se tivesse melhores informações, não teria aprovado o negócio de quase US$ 2 bilhões da refinaria de Pasadena (nos Estados Unidos), à evidência, restou demonstrada ou omissão, ou imperícia ou imprudência ou negligência, ao avaliar o negócio"...


Na sequência do parecer, referi-me à destruição da Petrobras, reduzida a sua expressão nenhuma, nos anos de gestão da presidente Dilma Rousseff como presidente do Conselho de Administração e como presidente da República, por corrupção ou concussão, durante oito anos, com desfalque de bilhões de reais, por dinheiro ilicitamente desviado e por operações administrativas desastrosas, que levaram ao seu balanço não poder sequer ser auditado.

Como a própria presidente da República declarou que, se tivesse melhores informações, não teria aprovado o negócio de quase US$ 2 bilhões da refinaria de Pasadena (nos Estados Unidos), à evidência, restou demonstrada ou omissão, ou imperícia ou imprudência ou negligência, ao avaliar o negócio.

E a insistência, no seu primeiro e segundo mandatos, em manter a mesma diretoria que levou à destruição da Petrobras está a demonstrar que a improbidade por culpa fica caracterizada, continuando de um mandato ao outro.

À luz desse raciocínio, exclusivamente jurídico, terminei o parecer afirmando haver, independentemente das apurações dos desvios que estão sendo realizadas pela Polícia Federal e pelo Ministério Público (hipótese de dolo), fundamentação jurídica para o pedido de impeachment (hipótese de culpa).

Não deixei, todavia, de esclarecer que o julgamento do impeachment pelo Congresso é mais político que jurídico, lembrando o caso do presidente Fernando Collor, que afastado da Presidência pelo Congresso, foi absolvido pela suprema corte. Enviei meu parecer, com autorização do contratante, a dois eminentes professores, que o apoiaram (Modesto Carvalhosa, da USP, e Adilson Dallari, da PUC-SP) em suas conclusões.

IVES GANDRA DA SILVA MARTINS, 79- Advogado, é professor emérito da Universidade Mackenzie, da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército e da Escola Superior de Guerra

domingo, 1 de fevereiro de 2015

Serra e o fim de Dilma

Serra assegura que Dilma não acabará o mandato. É crível?

Senador do PSDB compara o "ambiente de desgoverno" com "os vividos por Jânio Quadros e João Goulart nos anos 60, quando ambos acabaram renunciando à presidência"


O senador José Serra, do oposicionista PSDB, um político de peso e prestígio nacional e internacional, fez uma profecia arriscada sobre a presidenta Dilma Rousseff e seu segundo mandato.
Em conversas com seus correligionários de partido, advertiu que Dilma “não irá concluir seu mandato”. Segundo suas afirmações, obtidas ontem pelo competente jornalista político do jornal O Globo Ilimar Franco, o senador Serra compara o “ambiente de desgoverno agravado pela crise econômica e pelas denúncias de corrupção, com os vividos pelos ex-presidentes Jânio Quadros e João Goulart nos anos 60, quando ambos acabaram renunciando à presidência”.

A profecia do senador oposicionista torna-se mais grave por tratar-se de um político com uma biografia e história de Governo nacional e estadual, que quando foi Ministro da Saúde do Governo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, alcançou projeção internacional por seu empenho em quebrar as patentes farmacêuticas para dar remédios grátis aos portadores de AIDS e por ampliar a política social dos medicamentos genéricos.
Presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE) em sua juventude, exilado durante a ditadura militar de 1964, e mais tarde duas vezes ministro, prefeito e Governador de São Paulo, Serra, que representa a esquerda social do PSDB, disputou as eleições presidenciais com Lula em 2002.
Hoje, o senador tucano segue com possibilidades de voltar a disputar a Presidência da República em 2018 ou até mesmo antes, se for cumprida sua profecia sobre a renúncia de Dilma.
Serra não é impulsivo nem simplista. Sabe o que diz e quando o diz. Por isso, ao lançar sua profecia aos seus devia estar consciente de que pisava em campo minado e em um momento especialmente crítico pelo qual o país atravessa.
É de estranhar, entretanto, que o senador não tenha indicado ao mesmo tempo quem poderia levar a presidenta Dilma a abdicar de seu cargo.
No caso do popular Jânio Quadros, que renunciou em 1961 depois de sete meses de Governo, o mesmo falou em sua carta de despedida de “forças ocultas levantadas contra mim”. Hoje, existem estas mesmas forças ocultas que obrigariam Dilma Rousseff a deixar a Presidência?
O partido de Serra foi o primeiro a se opor oficialmente por meio de seu presidente Aécio Neves contra aqueles que começaram a pedir o impeachment de Dilma após o apertado resultado das eleições presidenciais. E Aécio foi o primeiro a felicitar a vencedora das eleições, naquela noite.
É de estranhar que o senador não tenha indicado ao mesmo tempo quem poderia levar a presidenta a abdicar de seu cargo
No caso de João Goulart, foram os militares que o depuseram da Presidência para dar vida ao golpe por medo de que o Brasil pudesse se transformar em uma nova Cuba. Hoje, como Serra sabe melhor do que ninguém, é impensável qualquer tipo de movimento sério por parte dos militares para derrubar Dilma, nem ninguém teme os comunistas, que se aburguesaram como a maioria dos partidos.
A nova geração das Forças Armadas colabora ativamente com as instituições democráticas. Os militares suportaram firmes a atuação da Comissão da Verdade sobre os crimes cometidos pelo Exército durante a ditadura.
Se pode existir algum mal-estar entre os militares pela grave crise econômica, de valores e até social que o país atravessa, flertando com a recessão econômica e com fricções evidentes entre o Governo e o Congresso e entre Dilma e seu partido, o PT, isso não vai além do que se vê nas outras instituições: os partidos políticos, os juízes, os movimentos sociais, a Igreja Católica e todos os cidadãos comuns, descontentes com a má qualidade dos serviços públicos agravada pela corrupção política e empresarial que se revela maior a cada dia e cujo símbolo é a degradação da Petrobras, que poderia derrubar nos próximos dias dezenas de congressistas e até ministros, ex-ministros e ex-governadores, que podem ser processados pela justiça enquanto grandes empresários continuam na prisão.
Entretanto, nenhum desses estamentos hoje se apresenta capaz e com força para obrigar Dilma a renunciar ao seu cargo.
Talvez pudessem ser todos esses descontentes, crise econômica e corrupção juntos? Isso implicaria que Dilma, constrangida pelo que Serra chama de “desgoverno”, poderia jogar a toalha antes de cumprir seu segundo mandato.
Mas Dilma Rousseff não é Jango e Serra sabe disso. Talvez a ex-guerrilheira se pareça em sua firmeza de caráter e em suas convicções, acertadas ou não, ao tucano, ele também duro e firme como uma rocha quando se trata de defender suas convicções.
Quem conhece a presidenta de perto, e por isso às vezes é testemunha da dureza de um temperamento que não aceita nunca se equivocar e que ama o poder, sabe muito bem que nenhum medo de “forças ocultas levantadas contra ela”, como no caso de Jango, seria suficiente para fazê-la desistir espontaneamente de seu cargo.
Sem contar que em um momento de grave crise, por exemplo, com o Congresso ou por parte de possíveis acusações de conivência com a corrupção, Dilma contaria sempre com o apoio popular de Lula, que mesmo existindo hoje arestas entre eles, não permitiria que ela fracassasse. Ela mesma, em um gesto de clara inteligência política, sempre se blindou, para o bem e para o mal, nos 12 anos de Governo do PT. Dilma não morreria sozinha.
Por tudo isso, Serra deveria explicar melhor aos seus quem são, nesse momento e contexto histórico, que pouco tem a ver com o dos anos 60 das renúncias de Jango e Goulart, aqueles que poderiam obrigar Dilma a renunciar.

A mudança virá "por fora"?

O Estado de S. Paulo, 1 de fevereiro de 2015.

Chegou a hora

FERNANDO HENRIQUE CARDOSO* - O Estado de S.Paulo
01 Fevereiro 2015 | 02h 04
Quando eventualmente este artigo vier a ser lido, a Câmara dos Deputados estará escolhendo seu novo presidente. Ganhe ou perca o governo, as fraturas na base aliada estarão expostas. Da mesma maneira, o esguicho da Operação Lava Jato respingará não só nos empresários e ex-dirigentes da Petrobrás nomeados pelos governos do PT, mas nos eventuais beneficiários da corrupção que controlam o poder. A falta de água e seus desdobramentos energéticos continuarão a ocupar as manchetes. Não se precisa saber muito de economia para entender que a dívida interna (R$ 3 trilhões!), os desequilíbrios dos balanços da Petrobrás e das empresas elétricas, a diminuição da arrecadação federal, o início de desemprego, especialmente nas manufaturas, o aumento das taxas de juros, as tarifas subindo, as metas de inflação sendo ultrapassadas dão base para prognósticos negativos do crescimento da economia.
Tudo isso é preocupante, mas não é o que mais me preocupa. Temo, especialmente, duas coisas: o havermos perdido o rumo da História e o fato de a liderança nacional não perceber que a crise que se avizinha não é corriqueira - a desconfiança não é só da economia, é do sistema político como um todo. Quando esses processos ocorrem, não vão para as manchetes de jornal. Ao entrar na madeira, o cupim é invisível; quando percebido, a madeira já apodreceu.
Por que temo havermos perdido o rumo? Porque a elite governante não se apercebeu das consequências das mudanças na ordem global. Continua a viver no período anterior, no qual a política de substituição das importações era vital para a industrialização. Exageraram, por exemplo, ao forçar o "conteúdo nacional" na indústria petrolífera, excederam-se na fabricação de "campeões nacionais" à custa do Tesouro. Os resultados estão à vista: quebram-se empresas beneficiárias do BNDES, planejam-se em locais inadequados refinarias "premium" que acabam jogadas na vala dos projetos inconclusos. Pior, quando executados, têm o custo e a corrupção multiplicados. Projetos decididos graças à "vontade política" do mandão no passado recente.
Pela mesma cegueira, para forçar a Petrobrás a se apropriar do pré-sal, mudaram a Lei do Petróleo, que dava condições à estatal de concorrer no mercado, endividaram-na e a distanciaram da competição. Medida que isentava a empresa da concorrência nas compras se transformou em mera proteção para decisões arbitrárias que facilitaram desvios de dinheiro público.
Mais sério ainda no longo prazo: o governo não se deu conta de que os Estados Unidos estavam mudando sua política energética, apostando no gás de xisto com novas tecnologias, buscando autonomia e barateando o custo do petróleo. O governo petista apostou no petróleo de alta profundidade, que é caro, descontinuou o etanol pela política suicida de controle dos preços da gasolina, que o tornou pouco competitivo, e, ainda por cima (desta vez graças à ação direta de outra mandona), reduziu a tarifa de energia elétrica em momento de expansão do consumo, além de ter tomado medidas fiscais que jogaram no vermelho as hidrelétricas.
Agora todos lamentam a crise energética, a falta de competitividade da indústria manufatureira e a alta dos juros, consequência inevitável do desmando das contas públicas e do descaso com as metas de inflação. Os donos do poder esqueceram-se de que havia alternativas, que sem renovação tecnológica os setores produtivos, isolados, não sobrevivem na globalização e que, se há desmandos e corrupção praticados por empresas, eles não decorrem de erros do funcionalismo da Petrobrás, nem exclusivamente da ganância de empresários, mas de políticas que são de sua responsabilidade, até porque foi o governo que nomeou os diretores ora acusados de corrupção, assim como foram os partidos ligados a ele os beneficiados.
Preocupo-me com as dificuldades que o povo enfrentará e com a perda de oportunidades históricas. Se mantido o rumo atual, o Brasil perderá um momento histórico e as gerações futuras pagarão o preço dos erros dos que hoje comandam o País. Depois de 12 anos de contínua tentativa de desmoralização de quase tudo o que meu governo fez, bem que eu poderia dizer: estão vendo, o PT beijou a cruz, tenta praticar tudo o que negou no passado - ajuste fiscal, metas de inflação, abertura de setores públicos aos privados e até ao "capital estrangeiro", como no caso dos planos de saúde. Quanto ao "apagão" que nos ronda, dirão que faltou planejamento e investimento, como disseram em meu tempo? Em vez disso, procuro soluções.
Nada se consertará sem uma profunda revisão do sistema político e mais especificamente do sistema partidário e eleitoral. Com uma base fragmentada e alimentando os que o sustentam com partes do Orçamento, o governo atual não tem condições para liderar tal mudança. E ninguém em sã consciência acredita no sistema prevalecente. Daí minha insistência: ou há uma regeneração "por dentro", governo e partidos reagem e alteram o que se sabe que deve ser alterado nas leis eleitorais e partidárias, ou a mudança virá "de fora". No passado, seriam golpes militares. Não é o caso, não é desejável nem se veem sinais.
Resta, portanto, a Justiça. Que ela leve adiante a purga; que não se ponham obstáculos insuperáveis ao juiz, aos procuradores, aos delegados ou à mídia. Que tenham a ousadia de chegar até aos mais altos hierarcas, desde que efetivamente culpados. Que o STF não deslustre sua tradição recente. E, principalmente, que os políticos, dos governistas aos oposicionistas, não lavem as mãos. Não deixemos a Justiça só. Somos todos responsáveis perante o Brasil, ainda que desigualmente. Que cada setor político cumpra a sua parte e, em conjunto, mudemos as regras do jogo partidário eleitoral. Sob pena de sermos engolfados por uma crise que se mostrará maior do que nós.

quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

Insegurança jurídica

http://www.conjur.com.br/2015-jan-28/advogados-brasil-vive-inseguranca-juridica-nunca-antes-vista

Entendimentos mutantes

Para advogados, Brasil vive insegurança jurídica nunca antes vista



“O empresário que vai fazer um investimento quer saber os riscos que ele vai enfrentar. O problema é que agora estamos vivendo um regime de instabilidade e insegurança jurídicos nunca antes visto, em todas as áreas”, afirma Marcelo Gômara, sócio na área trabalhista do Tozzini Freire Advogados.
De acordo com o advogado (foto), a instabilidade jurídica ficou ainda maior nos últimos anos porque “os tribunais estão praticando uma política social, que é cria da política social do governo". O resultado disso, resume ele: "mudanças brutais de entendimento sem aviso prévio. A jurisprudência muda do dia para a noite".
Gômara debateu o assunto nesta terça-feira (27/1), na apresentação do estudo 2015 Outlook for Legal Issues in Brazil, que fez um levantamento das tendências do mercado jurídico no país para este ano.
Para os sócios e chefes de departamento do escritório, os advogados precisam se adaptar ao momento de incertezas e transição pela qual o país vem passando, de forma a dar um respaldo melhor aos seus clientes, mas ainda veem com pessimismo a forma como o momento político influencia o sistema legal no país.
"A prática mudou em muitas áreas — criminal, compliance, falências... Os pequenos escritórios especializados acabaram perdendo um pouco a importância, porque os escritórios maiores, que atendem diversas áreas, acabam pegando os casos com problemas mais complexos", afirma Alexei Bonamin, sócio na área de mercado de capitais do TozziniFreire.
Os profissionais concordam ainda há entraves culturais e práticas de Ddireito mais conservadoras que têm atrapalhado a solução de conflitos. “Tempos atrás, fazer uma delação premiada, por exemplo, era mais complicado, porque o advogado não  ia falar para o cliente admitir o crime. Não existe essa cultura do dedo-duro no Brasil e o advogado também não queria perder o seu cliente. Hoje, pela influência de como a delação premiada se desenvolveu nos Estados Unidos e ajudou o sistema Judiciário deles e com os recentes e grandes casos no Brasil, essa mentalidade já mudou”, exemplifica Marcelo Calliari, sócio na área Direito Concorrencial do escritório.
Com tantas mudanças, o melhor jeito de preparar é um conceito já conhecido: “É necessário se reinventar. A prática de trabalho já mudou. É preciso acompanhar as mudanças de paradigmas”, completou Bonamin (foto).
O estudo divulgado foi feito por meio de uma parceria do escritório com a LatinFinance e a consultoria europeia Management & Excellence (M&E), sendo elaborada com base em entrevistas a 80 executivos de empresas de 13 setores — como petróleo e gás, logística e indústria eletrônica —, que foram questionados sobre perspectivas para o ambiente de negócios no Brasil no que diz respeito a legislação trabalhista, tributos e impostos, direito ambiental, antitruste, fusões e aquisições, compliance, propriedade intelectual e transferência de tecnologia.

quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

O palco está pronto

Folha de S. Paulo, 27 de janeiro de 2015.

Marta Suplicy
TENDÊNCIAS/DEBATES

O diretor sumiu

Se houvesse transparência na condução da economia no governo Dilma, ela não teria aprofundado os erros que nos trouxeram a esta situação
Tenho pensado muito sobre a delicadeza e a importância da transparência nos dias de hoje. Temos vivido crises de todos os tipos: crise econômica, política, moral, ética, hídrica, energética e institucional. Todas elas foram gestadas pela ausência de transparência, de confiança e de credibilidade.
Se tivesse havido transparência na condução da economia no governo Dilma, dificilmente a presidente teria aprofundado os erros que nos trouxeram a esta situação de descalabro. Não estaríamos agora tendo de viver o aumento desmedido das tarifas, a volta do desemprego, a diminuição de direitos trabalhistas, a inflação, o aumento consecutivo dos juros, a falta de investimentos e o aumento de impostos, fazendo a vaca engasgar de tanto tossir.
Assim que a presidenta foi eleita, seu discurso de posse acompanhou o otimismo e reiterou os compromissos da campanha eleitoral: "Nem que a vaca tussa!".
Havia uma grande expectativa a respeito do perfil da equipe econômica que a presidenta Dilma Rousseff escolheria. Sem nenhuma explicação, nomeia-se um ministro da Fazenda que agradaria ao mercado e à oposição. O simpatizante do PT não entende o porquê. Se tudo ia bem, era necessário alguém para implementar ajustes e medidas tão duras e negadas na campanha? Nenhuma explicação.
Imagina-se que a presidenta apoie o ministro da Fazenda e os demais integrantes da equipe econômica. É óbvio que ela sabe o tamanho das maldades que estão sendo implementadas para consertar a situação que, na realidade, não é nada rósea como foi apresentada na eleição. Mas não se tem certeza. Ela logo desautoriza a primeira fala de um membro da equipe. Depois silencia. A situação persiste sem clareza sobre o que pensa a presidenta.
Iniciam-se medidas de um processo doloroso de recuperação de um Brasil em crise. Até onde ela se propõe a ir? Até onde vai o apoio à equipe econômica?
Para desestabilizar mais um pouco a situação, a Fundação Perseu Abramo, do PT, critica as medidas anunciadas, o partido não apoia as decisões do governo e alguns deputados petistas vociferam contra elas. Parte da oposição, por receio de se identificar com a dureza das medidas, perde o rumo criticando o que antes preconizou.
O PT vive situação complexa, pois embarcou no circo de malabarismos econômicos, prometeu, durante a campanha, um futuro sem agruras, omitiu-se na apresentação de um projeto de nação para o país, mas agora está atarantado sob sérias denúncias de corrupção.
Nada foi explicado ao povo brasileiro, que já sente e sofre as consequências e acompanha atônito um estado de total ausência de transparência, absoluta incoerência entre a fala e o fazer, o que leva à falta de credibilidade e confiança.
É o que o mercado tem vivido e, por isso, não investe. O empresariado percebe a situação e começa a desempregar. O povo, que não é bobo, desconfia e gasta menos para ver se entende para onde vai o Brasil e seu futuro.
Acrescentem-se a esse quadro a falta de energia e de água, o trânsito congestionado, os ônibus e metrôs entupidos, as ameaças de desemprego na família, a queda do poder aquisitivo, a violência crescente, o acesso à saúde longe de vista e as obrigações financeiras de começo de ano e o palco está pronto.
A peça se desenrola com enredo atrapalhado e incompreensível. O diretor sumiu.
MARTA SUPLICY é senadora pelo PT-SP. Foi prefeita de São Paulo (2001-2004), ministra do Turismo (2007-2008) e ministra da Cultura (2012-2014)

A democracia funciona?

Folha de S. Paulo, 27 de janeiro de 2015.

Hélio Schwartsman

Não viu quem não quis

SÃO PAULO - É claro que foi um estelionato eleitoral. No caso dos paulistas, a fraude foi dupla, já que tanto Dilma como Alckmin nem sequer esperaram a abertura dos trabalhos legislativos para começar a fazer o que prometeram que não ocorreria.
É fácil, porém, imprecar contra políticos. Um fato menos destacado é que todos os indícios de que os então candidatos mentiam ou pelo menos edulcoravam perigosamente a realidade já estavam colocados durante a campanha e foram destacados pela mídia. Não os viu quem não quis.
Não, não estou reclamando do conteúdo do estelionato. É ruim que Dilma e Alckmin tenham ludibriado pessoas (ainda que com sua adesão voluntária), mas seria muito pior se a presidente insistisse na "nova matriz econômica" e se o governador continuasse a bater na tecla de que o abastecimento de água está garantido. Isso nos leva ao tema central da coluna: a democracia funciona? Um sistema que incentiva dirigentes a enganar a população não é um tiro no pé?
Em certa medida, sim, mas há dois pontos a considerar. O primeiro e mais importante é que a democracia, com todas as suas falhas, ainda é o melhor sistema de governo de que dispomos. O segundo é que a democracia lida melhor com alguns tipos de problema que com outros.
Eleições e a busca de consensos funcionam bem para eliminar erros que tenham distribuição gaussiana pela população, mas fracassam quando o viés é sistemático. Isso significa que o sistema é relativamente eficaz para combater chagas como o radicalismo, no qual as posições extremas de sinal invertido acabam se anulando, mas não para lidar com as ilusões cognitivas que afetam à maioria. E, infelizmente, o grosso dos eleitores leva a sério a palavra de autoridades e é vulnerável à promessa de um futuro róseo. O consolo aqui é que o eleitor acaba aprendendo, se não a lidar com seus vieses, ao menos a punir na urna aqueles que percebe como não confiáveis.

terça-feira, 27 de janeiro de 2015

65%

Folha de S. Paulo, 26 de janeiro de 2015.

Bernardo Mello Franco

República das medalhas

BRASÍLIA - Uma deputada estadual gaúcha aproveitou os últimos dias de mandato para distribuir medalhas a dez parentes. A notícia, divulgada no fim de semana, joga luz sobre uma velha prática das nossas casas legislativas: a concessão desenfreada de comendas, moções, títulos honorários e outros rapapés.
O hábito é tão disseminado que algumas Assembleias Legislativas chegaram a criar cotas de honrarias. No Rio de Janeiro, cada um dos 70 parlamentares tem direito a 24 moções anuais de "regozijo, congratulações, louvor, repúdio ou pesar". Até dezembro, a soma pode chegar a 1.680.
O cálculo não inclui condecorações mais nobres, como os títulos de cidadão fluminense e a Medalha Tiradentes, que já foi conferida a figuras como a apresentadora Mara Maravilha e o pagodeiro Waguinho.
Em geral, a escolha dos homenageados não requer muita explicação. Prevalece a regra de que o mandatário pode condecorar quem quiser. "Devo tudo aos eleitores, mas também à família. Agradecer é um ato de justiça", disse Marisa Formolo (PT), a deputada gaúcha que agraciou o marido, seis irmãos e três filhos.
Além de gerar gastos desnecessários, a farra das medalhas contribui para aumentar o fosso entre os cidadãos e quem deveria representá-los.
Há três anos, a ONG Transparência Brasil mostrou que 65% das propostas votadas nas Assembleias eram irrelevantes, ou seja, não tinham qualquer importância para a vida dos eleitores. Em vez de desempenhar suas funções, a maioria dos deputados preferia gastar o tempo mudando nomes de logradouros, marcando sessões solenes e, é claro, distribuindo condecorações.

sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

Que Congresso é este?

Folha de S. Paulo, 23 de janeiro de 2015.

Disputa deprimente

Rivalidade entre candidatos à presidência da Câmara dos Deputados se traduz em negociações fisiológicas e lances aloprados
Depois de um período de marcado favoritismo de Eduardo Cunha (PMDB-RJ), torna-se acirrada a disputa pela presidência da Câmara dos Deputados.
As chances do candidato preferido do governo federal, Arlindo Chinaglia (PT-SP), teriam crescido nos últimos tempos, com Júlio Delgado (PSB-MG) tentando impor-se como fiel da balança num eventual segundo turno.
Intensificando-se a rivalidade, aumenta proporcionalmente o potencial do noticiário para constranger, deprimir e rebaixar o espírito de quem o acompanhe.
Viagens de jatinho, em ritmo capaz de competir com o das eleições à Presidência da República, ocupam a agenda de postulantes que competem por pouco mais de 500 votos --os de seus pares na Casa.
Promessas vulgares, típicas do varejo político, entram na pauta de Cunha. O peemedebista acena, para seus colegas, com a equiparação definitiva do salário dos congressistas ao teto do funcionalismo, hoje fixado em R$ 33,7 mil.
Quem dá mais? Chinaglia pretende reajustar o caixa do gabinete de cada deputado, que consome R$ 78 mil por mês. Parece-lhe insuficiente, ademais, a verba indenizatória destinada ao pagamento de despesas como consultorias e passagens, que já chega a R$ 41 mil mensais em alguns casos.
Não se pense, porém, que migalhas desse tipo possam ser decisivas para mudar o voto de qualquer um. Oito partidos nanicos, totalizando 40 deputados, recebe ofertas mais substanciais do Planalto. Cargos no governo federal e em gestões petistas nos Estados e municípios se disponibilizam a esse grupo em troca do apoio a Chinaglia.
Mais absurdo é o episódio de suposta gravação contendo indícios de que Cunha estaria envolvido em irregularidades apuradas na Operação Lava Jato. Ainda que suspeitas desse tipo pairem sobre o nome do peemedebista, nada de concreto se revelou até agora.
O próprio Cunha dá ciência, então, de um áudio com que se pretenderia incriminá-lo. Notam-se vários sinais de inautenticidade. De onde teria vindo a impostura?
O peemedebista sugere que a manobra partiu de "aloprados" da Polícia Federal. Um deputado petista lança a hipótese contrária. Cunha estaria tentando vacinar-se contra outras denúncias.
O esclarecimento de todo o caso, calcula-se, virá apenas depois da eleição na Câmara. Enquanto isso, deputados e governo, engajados nessa disputa mesquinha, apequenam a Casa legislativa que, por definição constitucional, abriga os representantes do povo.
Do povo? Não; os congressistas, salvo honrosas e cada vez mais raras exceções, são representantes apenas dos próprios interesses, e o governo só amplia tal distorção.

quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

O avesso

Folha de S. Paulo, 21 de janeiro de 2015.

O avesso da república

O recorde dificilmente será tirado de Suely Campos (PP), governadora de Roraima. Eleita no ano passado, ela nomeou 19 parentes para postos de destaque no Estado, segundo o Ministério Público.
Campos, como infelizmente seria de imaginar, não foi a única personagem da política brasileira a insistir nessa lamentável confusão entre o público e o privado.
O leitor desta Folha tem percebido que sobram notícias de governadores e prefeitos que tratam o Executivo como se fosse uma empresa particular, com a qual podem fazer favores a familiares e amigos.
No Rio de Janeiro, por exemplo, talvez se sentindo em dívida com Sérgio Cabral (PMDB), seu padrinho político e antecessor no cargo, o governador Luiz Fernando Pezão (PMDB) entregou a Secretaria de Esporte, Lazer e Juventude aos cuidados de Marco Antônio Cabral.
Com 23 anos e tendo sido eleito deputado federal pelo PMDB-RJ, o filho do ex-governador fluminense terá pela frente nada menos que a Olimpíada de 2016. Estará qualificado para o desafio? Sua pouca idade sugere rala experiência, embora registre no currículo passagem pela Casa Civil carioca, sob os auspícios de Eduardo Paes (PMDB).
O prefeito do Rio, aliás, parece sempre disposto a agradar o governador do Estado. Se de 2011 a 2012 abrigou o filho de Sérgio Cabral, agora abriu espaço para o enteado de Pezão. Também filiado ao PMDB, o advogado Roberto Horta Jardim Salles, 33, assumirá uma subprefeitura recém-criada.
Situações semelhantes repetem-se Brasil afora. No Paraná, governado por Beto Richa (PSDB), a companhia de energia tem como superintendente um filho do ex-governador Orlando Pessuti (PMDB); na companhia de saneamento, uma diretoria está nas mãos de Antonio Carlos Salles Belinati, que substituiu a mãe no posto e cujo pai foi prefeito de Londrina pelo PP.
Na Bahia, o governador Rui Costa (PT) se valeu do segundo escalão para fazer média com aliados e até seduzir rivais. Ao todo, quatro filhos de políticos locais têm uma boquinha em sua gestão.
Todos esses são apenas exemplos de uma prática disseminada em todo o país, que inclui o uso da máquina pública para consolar políticos malsucedidos nas urnas ou empregar pessoas indicadas pelos mais diversos correligionários --para nada dizer das negociações espúrias que envolvem a troca de cargos por apoio político.
Nessas relações de compadrio, uma mão lava a outra --e quem se suja é o cidadão, que não paga seus impostos para sustentar apaniguados de quem quer que seja.

domingo, 18 de janeiro de 2015

'Novos baianos'

Folha de S. Paulo, 18 de janeiro de 2015.

Governadores nomeiam filhos de políticos

Pelo menos 12 jovens sem experiência em gestão pública ganharam cargos em secretarias e agências estaduais
Casos ocorrem em seis Estados; no Rio de Janeiro, filho de Sérgio Cabral tornou-se secretário de Esportes
JOÃO PEDRO PITOMBO DE SALVADOR DIÓGENES CAMPANHA DE SÃO PAULO Com perfil similar, eles têm mais que o currículo como fator decisivo para suas nomeações. São jovens entre 20 e 40 anos que nunca exerceram mandatos eletivos e têm pouca ou nenhuma experiência na gestão do serviço público.
Pelo menos 12 filhos de políticos assumiram cargos nos novos governos estaduais.
A prática não configura nepotismo, já que os pais geralmente são ex-gestores ou ocupam cargos em outras esferas públicas. Mais do que a garantia de emprego, os cargos são vitrines para a carreira política dos jovens.
É o caso do deputado federal eleito Marco Antônio Cabral (PMDB-RJ), 23, filho do ex-governador Sérgio Cabral. Às vésperas da Olimpíada, o jovem foi nomeado para secretaria estadual de Esportes.
'NOVOS BAIANOS'
Para agradar aliados e atrair partidos antes rivais, o governador da Bahia, Rui Costa (PT), nomeou os filhos de três políticos locais e manteve um quarto herdeiro em cargos de destaque no segundo escalão de sua gestão.
Um deles é Otto Alencar Filho, 37, que abriu mão de um cargo de direção na construtora Odebrecht. Filho do senador eleito Otto Alencar (PSD), vai assumir a presidência da Desenbahia (agência estadual de fomento).
"Ele não estava precisando de emprego. Só aceitou o cargo porque o governador o chamou e ele queria uma experiência no serviço público", diz Otto, cujo filho foi cotado candidato a deputado.
Outro é Diogo Medrado, que faz administração numa faculdade particular de Salvador e é filho do deputado federal não reeleito Marcos Medrado (SD).
Diogo se tornou presidente da estatal Bahiatursa ainda em 2014, numa tentativa do então governador Jaques Wagner (PT) de atrair o SD para a coligação de Costa.
Não deu certo e o SD apoiou o oposicionista Paulo Souto (DEM) nas eleições. No poder, o petista o manteve no governo e os Medrado agora podem deixar o SD. Secretário de Relações Institucionais baiano, Josias Gomes (PT) defende as nomeações. "Todos são qualificados", diz.
Já em Roraima, a governadora Suely Campos (PP) nomeou 19 parentes, segundo o Ministério Público, sendo duas filhas escaladas para importantes secretarias.
Na visão de especialistas, nomeações do tipo são retrato do clientelismo que ainda existe na política brasileira.
O cientista político Leôncio Martins Rodrigues diz ser impossível exercer a atividade política sem trocas de favores, "mas podia não ser tão exagerado assim".
"Sempre tem um grupo de seguidores que são agraciados com cargos. E o político acredita que, com um parente lá, vai ter alguém mais fiel, mais leal", avalia Rodrigues.

sábado, 17 de janeiro de 2015

As instituições não funcionam

Folha de S.Paulo, 17 de janeiro de 2015.

André Singer

Que se vayan todos?

As primeiras semanas de janeiro confirmam as previsões pessimistas sobre 2015. Decisões contracionistas no plano federal; escassez de água no Estado de São Paulo; conflito violento em torno do transporte público na maior cidade do país. Para acirrar os ânimos, um verão tórrido pontilhado de tempestades que deixam sem luz parte da população paulistana. Cria-se o ambiente para explosões de raiva.
Enquanto isso, a política segue o seu curso imperturbável. O PMDB, detentor da direção do Congresso Nacional, entra na disputa pela continuidade na presidência do Senado e da Câmara com nomes sujeitos a envolvimento no escândalo da Petrobras. Não seria razoável, ainda que por precaução mínima e respeito aos cidadãos, apresentar candidatos desvinculados de qualquer suspeita?
Serei chamado de ingênuo, o que ocorre com alguma frequência entre os leitores que me dão a honra de ler e comentar. Não se trata de ingenuidade e sim de evidenciar, na referência a valores, o assustador descolamento que existe entre o cotidiano na planície e a espécie de permanente baile da Ilha Fiscal em que vivem as instituições. Em particular, os grandes partidos. Parecem não se dar conta do buraco que se abre a seus pés.
No Estado de São Paulo, a situação emergencial ocasionada pela crise hídrica poderá causar efeito parecido ao que o apagão de 2001 teve sobre o governo Fernando Henrique Cardoso. Quando faltam os elementos básicos que sustentam o dia a dia, como água, energia elétrica ou alimentos, não se consegue pensar em outra coisa e o governante torna-se alvo de intenso repúdio.
O reconhecimento tortuoso por parte de Alckmin de que existe racionamento é como um tapa na cara do cidadão. Todos sabem que falta água em parte das casas pelo menos desde meados de 2014. É mais do que hora de o governador, com seriedade, comunicar o quadro real à população e o que precisará ser feito para enfrentá-lo.
Em outra esfera, o aumento das passagens na capital paulista foi feito de maneira que desconhece a força do novo tipo de mobilização social representado pelo Movimento Passe Livre (MPL). A Prefeitura argumenta que procedeu de acordo com as reivindicações de junho de 2013, entre outras coisas concedendo isenção de tarifa para estudantes de escolas públicas. No entanto, o prefeito Fernando Haddad (PT) deveria ter chamado antes o MPL e demais entidades interessadas no assunto para explicar e negociar publicamente o aumento, construindo opinião coletiva a respeito. Ao anunciar as novas tarifas de supetão e na calada das férias, subestimou o espírito do tempo.
As instituições não funcionam, mas não podemos viver sem elas. Precisamos transformá-las.

sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

Drible comum

Folha de S. Paulo, 9 de janeiro de 2015.

Bernardo Mello Franco

Uma prática comum

BRASÍLIA - O drible à lei, este velho esporte nacional, acaba de ganhar mais uma recordista. Trata-se da nova governadora de Roraima, Suely Campos (PP). Ela merece uma medalha: começou a praticar a modalidade antes da eleição e já conseguiu atrair as atenções do país com menos de dez dias no cargo.
Suely assumiu a candidatura como herança familiar. Até setembro passado, a vaga era do marido, o ex-governador Neudo Campos (PP). Driblador exímio, ele chegou a ser preso pela Polícia Federal, sob acusação de nomear funcionários fantasmas para embolsar seus salários.
Campos liderava as pesquisas, mas foi barrado pela Lei da Ficha Limpa e renunciou a 20 dias da eleição. Num deboche à Justiça Eleitoral, afirmou que seria a sombra da mulher ao lançá-la em seu lugar.
Empossada, a nova governadora virou notícia com um novo e ousado drible. O alvo desta vez foi o Supremo Tribunal Federal, que proibiu o nepotismo na administração pública. Em uma só tacada, Suely empregou 19 parentes no Estado, de acordo com o Ministério Público.
A grande família inclui duas filhas, nomeadas secretárias da Casa Civil e do Trabalho; uma irmã, secretária de Educação; um irmão, secretário-adjunto de Agricultura; e três sobrinhos, secretários de Saúde, Administração e Infraestrutura.
Segundo a assessoria de Suely, todas as nomeações estão dentro da lei. Ela sustenta que a súmula vinculante do Supremo não proibiu a indicação de parentes para cargos de natureza política, como ministérios e secretarias. Ou seja: as indicações podem ser imorais, mas não ilegais.
Mais espantosa que a desenvoltura da governadora em usar o Estado para engordar a renda da família, só a nota em que ela defende as escolhas. "É uma prática comum na história de Roraima a nomeação de pessoas próximas aos gestores para ocupar importantes secretarias", diz o documento. Os roraimenses elegeram Suely com 54,8% dos votos.