Uma democracia que vive de gatilhos
Nosso estado democrático de direto tem sofrido muito nestes tempos. As instituições não mais disciplinam a luta pelo poder
Renan Calheiros (Imagem: Fabio Rodrigues Pozzebom /Agência Brasil)
Pode o presidente do Senado recursar sozinho uma medida provisória ?O senador Renan Calheiros devolveu a medida provisória de desoneração fiscal sob o argumento de que matéria fiscal não se configura nem relevante, nem urgente. O Congresso nem aprovou, nem desaprovou. Apenas recusou-se a apreciar. Pode?
Nas medidas provisórias 22, 232, 135 e 275, por exemplo, de Fernando Henrique e Lula, todas sobre tributos, na mesma situação de hoje, o Congresso aceitou decidir e decidiu. Aprovou as duas primeiras e rejeitou as últimas. Ou seja, a prática da Casa de ontem, não ajuda a decisão do senador Renan de hoje.
Considerar como urgente e relevante o que não é, deturpa a relação entre os poderes da República. É o mau uso das medidas. Mas todos os presidentes da República, desde 1988 o fizeram. E todos os presidentes do Congresso compactuaram com esta deturpação.
Só uma vez, em 2008, Garibaldi Alves devolveu como não urgente, nem relevante uma medida provisória que tratava de filantropia. Aceitá-la já seria deturpação demais.
O que alimenta esta deturpação é o Congresso não decidir no tempo das necessidades da administração federal. Parece que estamos numa democracia de “urgências”. Não vem de hoje.
No regime militar havia o decurso de prazo. Se o Congresso não decidisse em sessenta dias, a matéria estava automaticamente aprovada. Desequilibrava o processo legislativo nacional em favor do Executivo.
Para recusar a MP 669/15, o Senador Renan usou de seu poder discricionário. Discricionário, segundo o Aurélio, é aquilo que é “livre de condições. Ilimitado”.
Segundo a doutrina jurídica, é o espaço de liberdade para avaliar se existe ou não conveniência e oportunidade para dizer sim, ou não.
Mas o que é urgência e relevância? São critérios fluidos que no fundo criam um espaço decisório de liberdade para o agente público.
Esta fluidez pode ser usada para avançar interesses próprios ou partidários ou para evidenciar critérios objetiváveis. Hoje, o autoritarismo ou a democracia se escondem dentro desta fluidez.
Os limites, justificativas e transparência da discricionariedade são hoje a questão fundamental da democracia. Mais do que a própria separação de poderes.
Em muitos casos, a conveniência e oportunidade tem se fundamentado na convicção pessoal ou de interesse político decisório, e que não tem nada a ver com a medida proposta.
Donde a pergunta inicial que fazemos é outra. Pode o Presidente do Senado usar da discricionariedade que a lei lhe confere para implementar uma estratégia política muito além da matéria da medida provisória? Pode o Executivo mandar como Medida Provisória, o que não é?
Nosso estado democrático de direto tem sofrido muito nestes tempos. As instituições não mais disciplinam a luta pelo poder.
Às vezes se tem a impressão que nossa democracia vive, como dizem os engenheiros elétricos, de gatilhos.
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