segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Frágil e delicada

Voto obrigatório

rJoão Sayad

A Terra tem 4 bilhões de anos. O homo sapiens, entre 100 e 500 mil anos. A história, desde que inventamos a escrita, 5.700 anos. A democracia grega aconteceu por alguns séculos há 2.500 anos e se tornou um modelo nunca mais alcançado. Roma teve momentos democráticos há dois mil anos e uma longa história de imperadores e golpes. Os regimes democráticos contemporâneos têm pouco mais do que duzentos anos. É um regime jovem, delicado e frágil.
Estabeleceu-se com sucesso nos Estados Unidos desde 1786 e na Inglaterra, a partir de 1688. Mesmo assim, a democracia americana conviveu por 82 anos, quase a metade do período, com a escravidão e em dois terços do tempo, com segregação racial.
A definição operacional de democracia é modesta quando comparada às propostas e discursos de políticos, defensores de direitos humanos e juristas. São democráticos os regimes em que há liberdade de expressão, onde qualquer cidadão pode ocupar os cargos de poder independentemente de seus antepassados, religião ou qualquer outra regra de exclusão e onde os três poderes são independentes e harmônicos. Só isto. Se vier algo a mais, ótimo, é lucro. Mesmo a partir desta definição modesta, a estabilidade e sobrevivência dos regimes democráticos é restrita a períodos curtos de tempo e a alguns países.
Não podemos perder o voto de quem "não está nem aí". São eles que garantem a estabilidade da nossa democracia
Deu certo nos países anglo-saxões. Na Alemanha, existe apenas há cento e poucos anos, sem descontar os anos de nazismo. Na Itália, a mesma coisa. Em Portugal e na Espanha, a mesma duração. Mas com a longa exceção dos governos de Antonio Salazar e Francisco Franco, existe há pouco mais de meio século.
Nos países escandinavos e na Suiça as democracias têm sido mais estáveis. O regime sobrevive melhor em países pequenos.
Na África, no Oriente Médio e na Ásia democracia é evento pouco provável. Na América Latina, um regime que sobrevive mal ou bem há apenas trinta anos.
Dá azar classificar os países destas regiões como "suíços". O Chile foi chamado de "Suíça da América Latina" um pouco antes do Allende. O Uruguai também, antes da ditadura militar. E o Líbano era a "Suíça" do Oriente Médio antes da guerra civil.
O professor Anthony Downs estudou as condições de sobrevivência e estabilidade dos regimes democráticos no século passado no livro "A Teoria Econômica da Democracia". Concluiu, entre outras coisas, que a sobrevivência dependia da presença de uma grande "maioria silenciosa" no espectro político de uma nação.
A democracia é estável se a distribuição de preferências ideológicas seguir uma distribuição normal - com a maior parte dos eleitores concentrada no centro, que ele chamou de maioria silenciosa, e parcelas menores distribuída nos extremos à direita e à esquerda. A "maioria silenciosa" não tem preferências definidas e claras sobre quais as melhores políticas ou a melhor forma de conduzir a vida pública nacional. Vivem as suas vidas, preocupados com questões locais e individuais. A política não os atrai.
Nesta situação, a melhor estratégia eleitoral é conquistar os eleitores do centro. Se candidatos de direita e esquerda caminham para o centro ganham mais eleitores do que perdem por abandonar os extremos. Os extremos não têm em quem votar, votam no candidato de direita ou de esquerda ainda que estes tenham se caminhado para o centro, mais longe de propostas radicais.
Se a distribuição é bimodal, isto é, se os eleitores se concentram à direita e à esquerda do espectro político sem o miolo da "maioria silenciosa", as eleições serão vencidas alternativamente por esquerdistas e direitistas. O regime será instável. Na ausência de uma "maioria silenciosa" predominante, o regime democrático é ameaçado. O país vai mal e a maioria silenciosa abandona o silêncio e começa a participar.
Quando os militares criaram dois partidos, a Arena e o MDB, estavam seguindo, sem saber, as ideias de Anthony Downs. Nesta situação, os dois partidos precisariam caminhar para o centro e atender a maioria silenciosa - que nos anos 80 lutava pela democracia mas que participara vinte anos antes na Marcha com Deus pela Família e pela Liberdade. Com dois partidos e voto obrigatório, quando e se houvesse eleições, os partidos caminhariam para o centro.
Tem se falado muito sobre reforma política. E tenho lido colunistas, individualistas e libertários pregarem o fim do voto obrigatório. Não lembro de nenhuma justificativa elaborada. Apenas reclamações contra o desconforto de votar a cada dois anos no domingo e a posição de princípio de que o governo não deve interferir na liberdade de cada eleitor que vota ou não, como quiser.
Mas Anthony Downs no seu livro e eu aqui, nesta coluna, achamos a proposta temerária. A extrema direita do Le Pen quase ganhou por causa da abstenção do eleitor francês que viajou no fim de semana. E é bem provável que o brasileiro da "maioria silenciosa" prefira descer para o litoral do que perder o domingo do dia da eleição.
A presença de inúmeros partidos pequenos e de um grande PMDB anódino e sem linha ideológica definida pode ser uma medida da maioria silenciosa no país. Não é um defeito a ser corrigido, a não ser a questão da distribuição dos recursos do Fundo Partidário que acaba incentivando a multiplicação de partidos. Mas uma boa parte dos eleitores troca seu voto por promessas de soluções para problemas regionais, corporativos ou setoriais. E deixa de lado as questões maiores sobre o futuro do país.
Vivemos agora um momento de radicalização - eleitores do PSDB e do PT nos extremos do espectro político (não muito extremos - os dois candidatos prometiam manter os bons programas do outro). Uma vitória e uma derrota apertadas - por alguns pontos percentuais. Não é uma boa notícia. Por isso precisamos do voto obrigatório. Não podemos perder o voto de quem "não está nem aí". São eles que garantem a estabilidade da frágil, delicada e recém inaugurada democracia brasileira.
João Sayad é professor da Faculdade de Economia e Administração da USP

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quinta-feira, 20 de novembro de 2014

baixa intensidade



http://noblat.oglobo.globo.com/artigos/noticia/2014/11/democracia-de-baixa-intensidade.html

Democracia de baixa intensidade – Carlos Tautz

Criminoso. Antidemocrático. Inadmissível. Qualquer adjetivo desse quilate se aplica à situação verificada pelo Ministério Público Federal no Hospital Central do Exército, no subúrbio do Rio de Janeiro. Em diligência para encontrar documentos que o comandante da unidade afirmara em outubro serem inexistentes, o MP descobriu não apenas os documentos surrupiados da legalidade pelo tal militar. Descobriu dossiês produzidos por espiões lotados naquela unidade com o monitoramento dos membros da Comissão Estadual da Verdade do Rio. Exatamente como faziam os ditadores que há 50 anos golpearam o presidente João Goulart e as reformas de base.
A situação não surpreende quem acompanha a ofensiva de agressões à ordem constitucional que o Estado brasileiro – e, em especial, as forças armadas – comete contra quem contesta a ordem ou a história oficiais. De impedimento de acesso às instalações onde se cometeu tortura, a negações mentirosas de agressão aos direitos humanos ocorridas nessas unidades, de tudo faz o comando do Exército, da Marinha e da Aeronáutica. Independentemente do seu suposto superior, o Ministro da Defesa Celso Amorim. Poucas vezes isso ganha destaque nas manchetes.
A lógica de arbitrariedade do episódio no HCE encaixa-se no tipo de democracia de baixa intensidade que ainda resiste no Brasil do século 21. A opressão do Estado contra a cidadania é diária e chega à intimidação aberta. Assim o demonstram o dossiê dos arapongas do general de subúrbio e, também, a repressão feroz da Polícia Militar aos protestos populares de 2013. Os dois episódios provam o quanto estamos distantes até das democracias capitalistas avançadas.
Este cenário de agressão aos direitos constitucionais continua sendo a praxe autoritária. No Rio, Estado e a União aliam-se numa militarização ampla, geral e irrestrita. Afirmam combater o tráfico, mas o que fazem é sufocar bairros pobres, caros, poluídos e engarrafados, onde a qualquer momento um protesto pode confrontar o poder político mancomunado com grupos empresariais que produzem esse caos para gerar lucro.
Temeroso de ver sua legitimidade firmemente confrontada, o governo fluminense tenta se proteger da sociedade. Seu orçamento da segurança só perde para o do pagamento da dívida e supera os da educação e da saúde. Em breve agregará à corrupta e agressiva PM mais 11 mil praças, que vão compor um exército estadual de quase 70 mil soldados, caveirões e tecnologia de espionagem. Parafernália que enche os bolsos da indústria bélica internacional, mas rouba salários dos profissionais da educação e remédios dos hospitais.
O crime que o general cometeu, de negar um passado em que os golpes pelo menos eram dados de forma aberta, tem a mesma essência do atual controle armado da população disfarçado de combate ao crime. Em ambas situações, o Estado brasileiro manda às favas a democracia real.

quarta-feira, 19 de novembro de 2014

Mudar para preservar

Folha de S. Paulo, 16 de novembro de 2014.

Ferreira Gullar

Começou a mudar?

O descontentamento que se manifestou em junho de 2013 parece ter ganho definição, objetivo e uma liderança
Não posso adivinhar qual será o desfecho desta história que começou com a morte surpreendente de Eduardo Campos, desdobrou-se na ascensão de Marina Silva, depois com o crescimento da candidatura de Aécio Neves e concluiu com a vitória de Dilma Rousseff sobre ele, pela diferença de apenas 3 milhões de votos.
Será que esse é o final do processo ou, na realidade, o começo de uma nova etapa da história política brasileira? Não sei, não tenho opinião formada sobre este momento; não obstante, tudo indica que esta não foi uma eleição como as outras e que, por isso mesmo, pode trazer consequências decisivas para o país, daqui em diante. Não resta dúvida de que estes 12 anos de governo petista tiveram consequências importantes na vida social e política do país. Não apenas o primeiro governo Lula se destacou no atendimento amplo do setor mais necessitado da população e fez crescer o salário mínimo, como também se valeu dessas conquistas para se manter no poder o mais tempo que puder.
Foi precisamente esse projeto que esteve em risco durante as últimas eleições, como demonstrou o resultado delas. O PT ganhou de novo, mas ganhou por pouco e as forças que se mobilizaram contra o partido não parecem dispostas a cruzar os braços e deixar o barco correr, como tem acontecido até aqui.
O temor de perder as eleições levou o PT --consequentemente sua candidata-- a subir o tom do discurso e radicalizar na tentativa de derrotar o adversário que, por sua vez, respondeu no mesmo diapasão. Nada disso ocorreu por acaso e, sim, como consequência da conjuntura política que se formou durante o governo de Dilma Rousseff.
A verdade é que esse quadro político se definiu, de um lado pelo desgaste do governo petista, que não pode esconder o agravamento dos problemas tanto no plano econômico e social, com a estagnação da economia e o crescimento da inflação, e, por outro lado, no plano político com o crescente escândalo que envolve a Petrobras e altas figuras do partido governante e seus aliados. Tudo isso, naturalmente, desgastou o governo e fez crescer o número de pessoas que passaram a desejar uma mudança drástica na realidade política e social do país. O resultado das últimas eleições reflete isso.
No entanto, é necessário constatar que todos esses fatores geraram uma nova configuração do quadro político nacional. É que, ao contrário do que vinha ocorrendo nestes 12 anos de governo petista, os que perderam estas últimas eleições --e que somam cerca de 51 milhões de eleitores-- não voltaram para casa como das outras vezes: vieram para as ruas e para as redes sociais manifestando o desejo de mudança.
Ao que tudo indica, se a campanha eleitoral terminou, a luta pela mudança radical da situação nacional continua. O descontentamento que se manifestou em junho do ano passado parece ter ganho, agora, definição e objetivo, e mais que isso, uma liderança.
De fato, o que ocorreu em junho de 2013 foi a expressão espontânea de parte da classe média contra o lamentável quadro político do país. Os sucessivos escândalos e a sombra da impunidade sempre presente resultaram nas manifestações de protesto que, sem liderança definida, não teriam maiores consequências.
Não obstante, assustou a classe política e, particularmente, os petistas, o que levou Dilma, extemporaneamente, a propor um plebiscito para uma nova Constituinte.
Um ano se passou, e chegaram as eleições. A campanha eleitoral contribuiu para que aquele descontentamento se definisse e ganhasse rumo: tirar o lulapetismo do poder já seria um passo adiante no rumo das mudanças que se fazem necessárias. Nessa conjuntura, o papel desempenhado por Aécio Neves, como candidato da oposição ao governo petista, fez dele o intérprete desse descontentamento e, possivelmente, o líder da luta pela mudança.
Claro que a mudança que se faz necessária tem que contar com o apoio não apenas da opinião pública --que é decisiva-- mas de forças políticas consideráveis, que ainda estão ligadas ao governo. De qualquer modo, não se trata de buscar soluções antidemocráticas mas, sim, ao que tudo indica, mudar para preservar a democracia.

segunda-feira, 17 de novembro de 2014

O ônus

Folha de S. Paulo, 17 de novembro de 2014.

O ônus da violência

Homicídios não só destroem famílias e levam ansiedade à população mas também causam prejuízos bilionários à economia e ao país
Um engano frequente entre estrangeiros que visitam o Brasil está em confundir com mansidão a proverbial cordialidade dos nacionais. Um país com índice de homicídios no patamar de 25,2 casos por grupo de 100 mil habitantes só pode ser classificado como violento --e paga caro por isso.
Surge agora uma cifra para emprestar a objetividade fria dos números ao descalabro no setor de segurança: R$ 258 bilhões, ou 5,4% do PIB brasileiro. De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, tal é o custo imposto à nação pelos mais de 50 mil assassinatos praticados a cada ano.
A maior fatia do ônus, R$ 114 bilhões, corresponde à perda de capital humano. As vítimas mais comuns de homicídios são jovens, cuja vida produtiva se vê interrompida logo ao começar, com consequências financeiras graves para os familiares remanescentes.
No cômputo da parcela complementar entram gastos com segurança privada, seguros, sistema hospitalar, prisões e investimentos nas corporações policiais.
Considerados só os investimentos governamentais na área, aplica-se 1,26% do PIB brasileiro. Um percentual semelhante ao despendido nos EUA (1%) e na União Europeia (1,3%), que no entanto ostentam taxas de homicídio muito mais baixas, respectivamente 4,7 e 1,1 casos por 100 mil habitantes.
A conclusão parece inescapável: nosso gasto é ineficiente. Na América do Sul, o Chile destina 0,8% do PIB e tem taxa de 3,1 por 100 mil.
Suscita ainda mais consternação verificar que, no ano passado, 2.212 mortes se deram pelas mãos de policiais. No último quinquênio, conforme o anuário, houve 11.197 vítimas da letalidade das forças de segurança, mais do que mataram em três décadas todas as polícias dos Estados Unidos, com população 60% maior.
Não há como se orgulhar desses indicadores. Nem mesmo quando se observam as diferenças entre as realidades do crime aqui e lá e a violência epidêmica em redutos brasileiros do crime organizado.
Só uma sociedade acossada por décadas de insegurança permite vicejar em seu meio a noção distorcida de que a eficácia policial possa ser mensurada pela quantidade de suspeitos que mata, e não pelo número de investigações que levam à correta identificação dos autores e à condenação pela Justiça.
Nesses quesitos, nossos indicadores são indecentes de tão baixos. E todos pagamos por eles --em vidas, ansiedade e, agora se sabe, centenas de bilhões que teriam muito melhor emprego como investimentos em saúde e educação, cruciais para o desenvolvimento do país pelo que lhe acrescentam, e não pelo que subtraem.

quarta-feira, 12 de novembro de 2014

Supremo equívoco?

Folha de S. Paulo, 12 de novembro de 2014.

Luís Inácio Adams
TENDÊNCIAS/DEBATES

Supremo equívoco

A afirmação do ministro Gilmar Mendes não guarda qualquer proximidade com o efetivo funcionamento das instituições brasileiras
A partir de uma entrevista do ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes à Folha, em que ele afirma que "o STF não pode se converter em uma corte bolivariana", suscitou-se um intenso debate nos meios de comunicação.
De uma só vez, o ministro questionou três Poderes da República. O Executivo, pois é a Constituição que determina ao presidente da República a indicação dos ministros do STF (Supremo Tribunal Federal). O Legislativo, já que incumbe ao Senado a aprovação da indicação. E o Judiciário, uma vez que o STF é nossa corte suprema. Mas, sobretudo, foram atingidas a democracia brasileira e suas instituições.
Tal declaração assenta-se em grave equívoco. A realidade venezuelana não se compara à do Brasil, sendo que a afirmação do ministro Gilmar Mendes não guarda qualquer proximidade com o efetivo funcionamento das instituições políticas brasileiras, particularmente do Supremo Tribunal Federal.
De fato, a nossa corte suprema tem se notabilizado, nos 26 anos de vigência da Constituição, como uma instituição independente e vocacionada à defesa da dignidade da pessoa humana, da democracia e do Estado brasileiro.
É preciso reafirmar que o governo do presidente Lula e o governo da presidenta Dilma Rousseff foram exemplares no fortalecimento das instituições democráticas. Apoiaram a aprovação e a implementação do Conselho Nacional de Justiça, por meio da Emenda Constitucional 45, assim como a adoção de diversas leis que aperfeiçoaram o funcionamento do Poder Judiciário, a partir de dois Pactos Republicanos assinados pelos três Poderes da República.
Os presidentes Lula e Dilma indicaram nomes para compor o Judiciário e a direção do Ministério Público Federal com base em critérios republicanos e no devido respeito à independência de nossas instituições.
Consoante a essa diretriz republicana, das quatro indicações ao STF feitas pela presidenta Dilma, três recaíram em magistrados de carreira e uma em procurador de Estado. Na atual composição do tribunal, sete ministros foram escolhidos pelos presidentes Lula e Dilma, seguindo determinação constitucional, e todos exercem suas atividades com independência.
Exemplo disso são os relevantes casos conduzidos pelos ministros indicados pelos últimos dois presidentes da República e que têm reflexo nas áreas econômica e social, como as discussões relativas à liberdade de imprensa, à demarcação da reserva indígena Raposa Serra do Sol, à liberação das pesquisas com células-tronco, ao reconhecimento civil das relações homoafetivas e aos aumentos de alíquotas de contribuições sociais por meio de medida provisória.
Na realidade, a ameaça às instituições democráticas brasileiras vem do nosso passado de intolerância e autoritarismo, que julgávamos enterrado. Não se trata apenas de descabidas propostas de intervenção militar, mas de uma série de iniciativas que agridem a democracia. O pedido de recontagem de votos, elaborado sem nenhum fato que lhe dê sustentação, atinge a Justiça Eleitoral e um sistema de votação elogiado em todo o mundo.
Essa perigosa aposta política na ingovernabilidade nos aproxima da insensatez e do paroxismo político que não condizem com o Brasil democrático que tanto nos custou construir. É um supremo equívoco.
LUÍS INÁCIO LUCENA ADAMS, 49, é ministro-chefe da Advocacia-Geral da União

segunda-feira, 10 de novembro de 2014

PCC e Hezbollah

Veja 12 de novembro de 2014.

PF aponta elo entre PCC e Hezbollah
10 Nov 2014

Documentos mostram que criminosos estrangeiros abriram canais para o envio de armas a grupo brasileiro

Francisco Leali


BRASÍLIA - Na região de fronteira que separa Brasil, Argentina e Paraguai, a atuação de grupos ligados ao terrorismo internacional sempre foi, para as autoridades americanas, um fato incontestável. No Brasil, pelo menos oficialmente, o caso nunca foi admitido, e as declarações governamentais costumam minimizar o tema. Nos últimos anos, no entanto, os serviços de inteligência do país reuniram uma série de indícios de que traficantes de origem libanesa ligados ao Hezbollah, o "Partido de Deus", se aventuraram numa associação com criminosos brasileiros. Relatórios produzidos pela Polícia Federal apontam que esses grupos se ligaram ao PCC, organização criminosa que atua nos presídios brasileiros, principalmente nos de São Paulo.
Uma série de documentos obtidos pelo GLOBO revela que essa espécie de sociedade da delinquência começou a ser montada em 2006. Mas as provas só foram descobertas dois anos depois, quando uma operação realizada pela PF reuniu os primeiros indícios da ligação entre libaneses e a organização criminosa brasileira. Na época, envolvidos com o tráfico internacional foram presos. Segundo as autoridades americanas, o dinheiro da droga é justamente uma das fontes de financiamento de entidades terroristas. Já a PF encontrou indícios de que esse grupo de libaneses que operava com o tráfico abriu canais para o contrabando de armas destinadas à organização criminosa brasileira.
Trecho do relatório da PF destaca a aproximação do Hezbollah com traficantes brasileiros- Reprodução

Em troca, os criminosos brasileiros prometiam dar proteção a presos da quadrilha libanesa já detidos no Brasil. A notícia da associação criminosa surgiu de informante da PF. A veracidade acabou sendo confirmada pela área de inteligência, que monitorou não só os suspeitos sob investigação, como também os integrantes da facção brasileira que comandavam ações mesmo detidos em presídios federais e estaduais em São Paulo e Paraná.
Segundo relatório da PF, "a concentração de tais detentos vem auxiliando na aglutinação de indivíduos com interesses comuns, além de viabilizar o contato de traficantes de origem árabe com grupos" como a facção "com marcante presença nos estabelecimentos prisionais do estado de São Paulo". O documento diz ainda que os contatos internacionais dos traficantes libaneses "têm atendido aos interesses" da facção brasileira, "que, por seu turno, viabiliza uma situação favorável aos estrangeiros dentro do sistema prisional, além de assegurar algum lucro com negociações mesmo enquanto estão presos".
A partir de investigações e conversas com informantes que atuam na região da Tríplice Fronteira, o setor de inteligência da PF se convenceu de que os traficantes libaneses não só abriram canais para a organização criminosa obter armas no exterior, como teriam tido participação na venda de explosivos supostamente roubados pela facção brasileira. Foi identificada a participação dos traficantes libaneses na negociação de C4, um tipo de explosivo plástico que fora roubado no Paraguai. "Os libaneses em atividade criminosa, apesar de terem no tráfico de cocaína seu principal foco de atividades, também atuariam no tráfico de armas para grupos criminosos de São Paulo, sendo que, recentemente, também teriam intermediado uma negociação de explosivos (aparentemente C4, sendo também sabido que um carregamento de tal material foi subtraído no Paraguai e vem sendo vendido a preços bem baixos)", diz o relatório.
A área de inteligência da PF registrou ainda a troca de favores entre os dois grupos. Se os libaneses ajudavam no contrabando internacional de armas, a organização brasileira se encarregava de proteger os estrangeiros que já foram detidos no país. Diz documento da PF que "vários libaneses estariam estreitando suas relações" com a facção brasileira há cerca de três anos, "sendo qualificado como forte o vínculo com a referida organização criminosa, sendo constantes seus contatos". "Sabe-se, entretanto, que a ligação de libaneses estaria beneficiando mais a organização criminosa (brasileira), com poucos benefícios para os estrangeiros, embora tal situação venha sendo aceita por conveniências dentro do sistema prisional", diz um documento da PF, produzido em 2009.
As informações sobre os vínculos entre as duas quadrilhas foram compiladas depois que o governo americano passou a apontar em seus relatórios anuais de combate ao narcotráfico a participação de libaneses da Tríplice Fronteira ligados ao comércio ilegal de drogas e ao financiamento de ações terroristas. Em 2006, relatório do Departamento do Tesouro americano chegou a listar nove pessoas acusadas de ajudar a enviar recursos para o Hezbollah. Além dos nomes, o relatório apontava que a Galeria Pagé, em Ciudad del Leste, no Paraguai, vizinha da cidade brasileira de Foz do Iguaçu, era o bunker dos agentes que davam suporte financeiro ao Hezbollah. Na época, o governo brasileiro emitiu nota negando haver prova de que terroristas atuassem na região do Sul do país. Nos anos seguintes, o DEA, a agência americana de combate às drogas, reiterou a acusação.
Em 2008, dois anos após o primeiro relatório do Tesouro dos EUA, os serviços de inteligência da PF já estavam apontados para a região. O GLOBO teve acesso à parte do acervo produzido que lista prisões de libaneses, identifica remessas de drogas e confirma a perigosa associação dos libaneses com a facção criminosa de brasileiros. O trabalho de monitoramento incluiu ainda missões para vigiar estrangeiros de origem libanesa que circulavam pelas cidades de Foz, Ciudad del Leste e Porto Iguazu, na Argentina.
Os documentos reúnem desde listas de nomes e períodos de hospedagens em hotéis até registros de um suposto risco de atentado terrorista no Brasil. No dia 28 de agosto de 2008, relatório de inteligência assegura que recebeu informe de "fonte não comprovada" de que um estrangeiro "integrante de uma organização terrorista" estaria viajando para Brasília para executar plano de assassinato. Há ainda a descrição de ações na Ponte da Amizade, na fronteira entre Brasil e Paraguai. Em fevereiro de 2008, por exemplo, policiais pararam um veículo em que estavam o libanês Mostapha Hamdan e o sírio naturalizado paraguaio Farouk Sadek Abdou. Esse último, pouco antes de ser abordado tentou destruir um papel onde havia 17 números de telefones.
Em abril do mesmo ano, mais uma vez a área de inteligência disparou alerta. Desta vez, sobre atuação da facção criminosa brasileira no Paraná. Havia suspeita de que armas contrabandeadas do Paraguai seriam usadas no resgate do preso Leandro Antonio, conhecido como Chacal. As autoridades locais foram alertadas, e a PF se encarregou de distribuir fotos e nomes dos possíveis envolvidos na operação.

domingo, 9 de novembro de 2014

Estelionato eleitoral?

Folha de S. Paulo, 9 de novembro de 2014.


Indigência política


Governo Dilma divulga com atraso dados negativos sobre miséria e desmatamento que teriam sido prejudiciais à campanha de reeleição
Veio à luz na quarta-feira (5) um dado chocante: pela primeira vez desde 2003, quando se iniciou a série de mandatos presidenciais do PT, a miséria aumentou no país. Apenas 3,7%, mas aumentou.
O espanto decorre de duas razões. A primeira está na própria inversão da tendência de queda de indicador tão importante quanto esse. A segunda é a confirmação de que o governo federal ocultou do público uma informação negativa com relevância eleitoral.
Para empregar um termo caro à presidente Dilma Rousseff, trata-se de prática estarrecedora.
A petista usou e abusou da redução da pobreza e da miséria como tema de campanha. Obediente ao comando do marqueteiro, martelou na sua propaganda que a oposição, se vitoriosa, interromperia o ciclo virtuoso na área social.
Pelo menos desde o primeiro turno, contudo, a candidata decerto já tinha conhecimento de que o total de miseráveis ou indigentes no Brasil havia passado de 10,08 milhões em 2012 para 10,45 milhões em 2013, segundo o Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada).
No conceito do instituto, são miseráveis os brasileiros cuja renda não basta para adquirir uma cesta mínima de alimentos. Sob a alegação cínica de que o dado teria efeito eleitoral, o Ipea o escondeu por quase um mês e só o publicou em surdina, no último dia 30, no banco de dados digital Ipeadata.
Do ponto de vista estatístico, a rigor caberia falar antes de estagnação dos avanços do que de crescimento da indigência. Do ângulo político, representa grave revés para a promessa de eliminar a miséria do país até o final deste ano.
Outro tema sensível que o Planalto se permitiu escamotear foi o desmatamento na Amazônia. Havia indicações de que a destruição avançara em agosto e setembro, mas o Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) atrasou a divulgação mensal das cifras de devastação do sistema de monitoramento por satélite Deter.
Só na sexta-feira (7) elas vieram a público, confirmando o desastre ambiental: 1.626 km² de desmate nos dois meses, 122% a mais que no mesmo intervalo de 2013.
Não estará errado quem, diante disso, evocar a imagem de um estelionato eleitoral. O governo, afinal, sonegou informações que a população tinha o direito de conhecer antes de decidir seu voto.
O quanto esses atestados de incompetência teriam mudado a escolha de cada eleitor, isso não se pode afirmar com certeza.
O que é certo, todavia, não é menos preocupante numa democracia: a sem-cerimônia com que o Planalto lança à sarjeta a reputação de dois importantes institutos nacionais e a pusilanimidade com que alguns de seus dirigentes e pesquisadores aceitam sujeitar funções públicas a mesquinhos interesses partidários.

sábado, 8 de novembro de 2014

MST e bolivarianismo



O Globo, 8 de novembro de 2014.
Governo venezuelano assina convênio com o MST
Documento foi assinado por Elias Jaua para ‘fortalecer o que é fundamental em uma revolução socialista’

03/11/2014 20:27 / Atualizado 03/11/2014 21:18

Movimentos sociais venezuelanos assinam convênio com o MST - Reprodução / Telesur
SÃO PAULO — O ministro para Comunas e Movimentos sociais da Venezuela, Elias Jaua, cuja babá foi presa em São Paulo ao tentar ingressar no país com uma arma guardada em uma maleta, assinou um convênio com o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), conforme ele mesmo definiu, “para fortalecer o que é fundamental em uma revolução socialista”. O convênio, de acordo com o MST, prevê estritamente cursos de formação na área de produção agrícola.
O acordo foi firmado no final do mês passado na sede da Escola Nacional Florestan Fernandes, do movimento sem-terra, em Guararema, a 80 quilômetros de São Paulo. A escola promove cursos de formação política e técnica para movimentos sociais do Brasil e da América Latina. Em discurso em Guararema, Jaua, que foi chanceler do ex-presidente Hugo Chávez, afirmou:
— Firmar esse convênio para incrementar a capacidade de intercâmbio de experiências, de formação, para fortalecer o que é fundamental em uma revolução socialista, que é a formação da consciência e da organização do povo para defender o que já foi conquistado e seguir avançando na construção de uma sociedade socialista.
A declaração foi divulgada pela TV venezuelana Telesur, que recebeu o convênio firmado com o MST como uma iniciativa para desenvolver a economia comunitária.
Imagens divulgadas pela TV venezuelana Telesur, que recebeu o convênio firmado com o MST como uma iniciativa para desenvolver a economia comunitária - Reprodução / Telesur
A babá contratada pela família de Jaua foi presa no dia 24 de outubro ao tentar passar pela imigração com uma arma. Ela já foi liberada e o ministro afirmou que o armamento pertencia a ele e que a viagem com a arma tratou-se de um “erro involuntário” da babá. Ele estava no Brasil com a família para participar justamente do evento com o MST em Guararema e para acompanhar a esposa que passava por um tratamento de saúde em São Paulo. Com o episódio, ele disse ter encurtado sua viagem retornando a Caracas em um avião da estatal de petróleo venezuelana, a PDVSA.
Segundo Jaua, a babá Yaneth Anza viajara ao Brasil para auxiliar o ministro nos cuidados com a mulher dele, internada em um hospital de São Paulo.
O líder do PSDB na Câmara, Antônio Imbassahy (BA), protocolou na sexta-feira passada no Ministério da Justiça e na procuradoria regional de São Paulo um pedido de abertura de investigações sobre possível prática de crime contra a segurança nacional e contra a ordem política e social cometido pelo ministro venezuelano. O tucano destaca que, além da arma, a suposta babá estava com documentos de “doutrinação política e ideológica”. Observou ainda que o ministro Elias Jaua Milano estava no Brasil para fechar acordos com o MST.
O Ministério da Justiça afirmou que está avaliando o pedido feito pelo líder do PSDB, mas que não há prazo para responder ao parlamentar.



quinta-feira, 6 de novembro de 2014

Juiz é Deus?



Extra, 4 de novembro de 2014.
Agente condenada por dizer que ‘juiz não é Deus’ não se arrepende: ‘Faria tudo de novo’
Luciana trabalhou na Lei Seca por três anos, antes de pedir licença Foto: Arquivo Pessoal
Ana Carolina Pinto e Breno Boechat
A decisão do desembargador José Carlos Paes, da 14ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, provocou um sentimento de impotência a Luciana Silva Tamburini. A agente licenciada do Detran-RJ, condenada em segunda instância a indenizar em R$ 5 mil o juiz João Carlos de Souza Correa, diz não se arrepender de ter dito ao magistrado — abordado durante uma blitz da Operação Lei Seca, no Leblon, Zona Sul do Rio — que “juiz não é Deus”.
O caso aconteceu em 2011, quando João Carlos de Souza Correa foi parado pela fiscal por dirigir um veículo sem placas e estar sem a Carteira Nacional de Habilitação. O magistrado chegou a dar voz de prisão a Luciana por desacato. Segundo a agente, a decisão que a condena por “ironizar uma autoridade pública” é uma ameaça ao trabalho de fiscais de trânsito e quaisquer outros agentes de segurança pública.
Luciana diz não se arrepender de declaração durante a blitz Foto: Arquivo Pessoal
— A sensação que fica é o medo de trabalhar, porque se a gente faz o errado, está errado; se a gente faz o certo, também está errado. Quem trabalha com segurança pública ou com o público em geral não pode ter medo. É desmotivante. No primeiro tópico do acórdão, eles falam que eu abusei de autoridade, mesmo que o magistrado estivesse irregular, por ele ter uma posição na sociedade. Você tenta fazer um trabalho direito e está errado por causa disso — lamenta Luciana.
A agente diz que decisão da Justiça dá medo aos fiscais Foto: Arquivo Pessoal
O processo, originalmente, foi movido pela agente contra o magistrado. Ela exigia indenização do juiz, alegando que ele tentou receber tratamento diferenciado por causa da função do cargo. Em primeira instância, no entanto, a Justiça entendeu que a policial perdeu a razão ao ironizar uma autoridade pública e reverteu a ação, condenando a agente a pagar a indenização. Luciana informa recorrer da manutenção da decisão, em segunda instância. O caso deve ir para o Superior Tribunal de Justiça.
— Eu vou até o final. Pode ter certeza que vou recorrer, porque sei que agi corretamente. Não me arrependo de nada, se tiver que fazer hoje de novo, farei a mesma coisa — afirma a agente.
Luciana, que está de licença do Detran-RJ para se preparar para um outro concurso, conta que atos de “carteirada” são recorrentes em operações desse tipo. Segundo ela, que trabalhou na Operação Lei Seca durante três anos, problemas com juízes e outras autoridades, no entanto, são incomuns.
— ‘Carteirada’ tem de todo tipo de gente, toda hora. É normal. Mas levar voz de prisão, ir à delegacia foi só dessa vez. Mas uma vez eu já apanhei. As pessoas acham que a gente está feliz de remover o carro dos outros. Eu estou ali pra cumprir a lei. Ele não foi o primeiro e nem o único juiz a ser parado. Normalmente, os juízes nem se identificam como juízes. A gente descobre pelo documento de identificação — relata a fiscal.
Com o salário de cerca de R$ 3,5 mil, Luciana considera a indenização muito alta. Na internet, a advogada Flávia Penido, de São Paulo, criou, nesta terça-feira, uma conta virtual de arrecadação para pagar a indenização de R$ 5 mil reais ao juiz. As doações já ultrapassaram o valor de R$, 3,4 mil. Todo o dinheiro arrecadado vai ser repassado a Luciana e à advogada dela, Sandra Tamburini.
— Achei a ideia bacana. É um incentivo, mas espero não precisar desse dinheiro e conseguir ganhar essa ação — comenta Luciana.
'Vaquinha' na internet ajuda agente a conseguir quantia para indenização Foto: Reprodução / Vakinha.com.br
Juiz se recusa a comentar o caso
O EXTRA procurou contato com o juiz João Carlos de Souza Correa, que, por meio de assessoria de comunicação do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, informou que “não vai se manifestar”. O desembargador José Carlos Paes, que manteve a decisão em segunda instância, também informou que não vai comentar o caso.
Foto: Márcio Alves / Agência O Globo
Reincidente
João Carlos de Souza Correa já havia se envolvido em uma confusão, com um policial rodoviário, em 2009, quando foi parado em Rio Bonito. Além do excesso de velocidade, chamou a atenção dos agentes um giroflex azul (luz de emergência giratória, usada por carros da polícia, por exemplo) no teto. Assim como no caso da agente da Lei Seca, ele também deu voz de prisão ao policial que fez a abordagem.
Segundo o policial rodoviário Anderson Caldeira, que comentou o caso em 2011, logo que desceu do veículo, o magistrado, aos berros, disse que era juiz de direito:
— Ele relutou muito em se identificar e em nenhum momento parou de gritar e me ameaçar, dizendo que me colocaria na rua, que a minha carreira no serviço publico estava acabada etc.