24/11/2014 às 05h00 Valor Econômico
Voto obrigatório
A
Terra tem 4 bilhões de anos. O homo sapiens, entre 100 e 500 mil anos. A
história, desde que inventamos a escrita, 5.700 anos. A democracia
grega aconteceu por alguns séculos há 2.500 anos e se tornou um modelo
nunca mais alcançado. Roma teve momentos democráticos há dois mil anos e
uma longa história de imperadores e golpes. Os regimes democráticos
contemporâneos têm pouco mais do que duzentos anos. É um regime jovem,
delicado e frágil.
Estabeleceu-se com sucesso nos Estados Unidos desde 1786 e na Inglaterra, a partir de 1688. Mesmo assim, a democracia americana conviveu por 82 anos, quase a metade do período, com a escravidão e em dois terços do tempo, com segregação racial.
A definição operacional de democracia é modesta quando comparada às propostas e discursos de políticos, defensores de direitos humanos e juristas. São democráticos os regimes em que há liberdade de expressão, onde qualquer cidadão pode ocupar os cargos de poder independentemente de seus antepassados, religião ou qualquer outra regra de exclusão e onde os três poderes são independentes e harmônicos. Só isto. Se vier algo a mais, ótimo, é lucro. Mesmo a partir desta definição modesta, a estabilidade e sobrevivência dos regimes democráticos é restrita a períodos curtos de tempo e a alguns países.
Não podemos perder o voto de quem "não está nem aí". São eles que garantem a estabilidade da nossa democracia
Deu certo nos países anglo-saxões. Na Alemanha, existe apenas há cento e poucos anos, sem descontar os anos de nazismo. Na Itália, a mesma coisa. Em Portugal e na Espanha, a mesma duração. Mas com a longa exceção dos governos de Antonio Salazar e Francisco Franco, existe há pouco mais de meio século.
Nos países escandinavos e na Suiça as democracias têm sido mais estáveis. O regime sobrevive melhor em países pequenos.
Na África, no Oriente Médio e na Ásia democracia é evento pouco provável. Na América Latina, um regime que sobrevive mal ou bem há apenas trinta anos.
Dá azar classificar os países destas regiões como "suíços". O Chile foi chamado de "Suíça da América Latina" um pouco antes do Allende. O Uruguai também, antes da ditadura militar. E o Líbano era a "Suíça" do Oriente Médio antes da guerra civil.
O professor Anthony Downs estudou as condições de sobrevivência e estabilidade dos regimes democráticos no século passado no livro "A Teoria Econômica da Democracia". Concluiu, entre outras coisas, que a sobrevivência dependia da presença de uma grande "maioria silenciosa" no espectro político de uma nação.
A democracia é estável se a distribuição de preferências ideológicas seguir uma distribuição normal - com a maior parte dos eleitores concentrada no centro, que ele chamou de maioria silenciosa, e parcelas menores distribuída nos extremos à direita e à esquerda. A "maioria silenciosa" não tem preferências definidas e claras sobre quais as melhores políticas ou a melhor forma de conduzir a vida pública nacional. Vivem as suas vidas, preocupados com questões locais e individuais. A política não os atrai.
Nesta situação, a melhor estratégia eleitoral é conquistar os eleitores do centro. Se candidatos de direita e esquerda caminham para o centro ganham mais eleitores do que perdem por abandonar os extremos. Os extremos não têm em quem votar, votam no candidato de direita ou de esquerda ainda que estes tenham se caminhado para o centro, mais longe de propostas radicais.
Se a distribuição é bimodal, isto é, se os eleitores se concentram à direita e à esquerda do espectro político sem o miolo da "maioria silenciosa", as eleições serão vencidas alternativamente por esquerdistas e direitistas. O regime será instável. Na ausência de uma "maioria silenciosa" predominante, o regime democrático é ameaçado. O país vai mal e a maioria silenciosa abandona o silêncio e começa a participar.
Quando os militares criaram dois partidos, a Arena e o MDB, estavam seguindo, sem saber, as ideias de Anthony Downs. Nesta situação, os dois partidos precisariam caminhar para o centro e atender a maioria silenciosa - que nos anos 80 lutava pela democracia mas que participara vinte anos antes na Marcha com Deus pela Família e pela Liberdade. Com dois partidos e voto obrigatório, quando e se houvesse eleições, os partidos caminhariam para o centro.
Tem se falado muito sobre reforma política. E tenho lido colunistas, individualistas e libertários pregarem o fim do voto obrigatório. Não lembro de nenhuma justificativa elaborada. Apenas reclamações contra o desconforto de votar a cada dois anos no domingo e a posição de princípio de que o governo não deve interferir na liberdade de cada eleitor que vota ou não, como quiser.
Mas Anthony Downs no seu livro e eu aqui, nesta coluna, achamos a proposta temerária. A extrema direita do Le Pen quase ganhou por causa da abstenção do eleitor francês que viajou no fim de semana. E é bem provável que o brasileiro da "maioria silenciosa" prefira descer para o litoral do que perder o domingo do dia da eleição.
A presença de inúmeros partidos pequenos e de um grande PMDB anódino e sem linha ideológica definida pode ser uma medida da maioria silenciosa no país. Não é um defeito a ser corrigido, a não ser a questão da distribuição dos recursos do Fundo Partidário que acaba incentivando a multiplicação de partidos. Mas uma boa parte dos eleitores troca seu voto por promessas de soluções para problemas regionais, corporativos ou setoriais. E deixa de lado as questões maiores sobre o futuro do país.
Vivemos agora um momento de radicalização - eleitores do PSDB e do PT nos extremos do espectro político (não muito extremos - os dois candidatos prometiam manter os bons programas do outro). Uma vitória e uma derrota apertadas - por alguns pontos percentuais. Não é uma boa notícia. Por isso precisamos do voto obrigatório. Não podemos perder o voto de quem "não está nem aí". São eles que garantem a estabilidade da frágil, delicada e recém inaugurada democracia brasileira.
João Sayad é professor da Faculdade de Economia e Administração da USP
Estabeleceu-se com sucesso nos Estados Unidos desde 1786 e na Inglaterra, a partir de 1688. Mesmo assim, a democracia americana conviveu por 82 anos, quase a metade do período, com a escravidão e em dois terços do tempo, com segregação racial.
A definição operacional de democracia é modesta quando comparada às propostas e discursos de políticos, defensores de direitos humanos e juristas. São democráticos os regimes em que há liberdade de expressão, onde qualquer cidadão pode ocupar os cargos de poder independentemente de seus antepassados, religião ou qualquer outra regra de exclusão e onde os três poderes são independentes e harmônicos. Só isto. Se vier algo a mais, ótimo, é lucro. Mesmo a partir desta definição modesta, a estabilidade e sobrevivência dos regimes democráticos é restrita a períodos curtos de tempo e a alguns países.
Não podemos perder o voto de quem "não está nem aí". São eles que garantem a estabilidade da nossa democracia
Deu certo nos países anglo-saxões. Na Alemanha, existe apenas há cento e poucos anos, sem descontar os anos de nazismo. Na Itália, a mesma coisa. Em Portugal e na Espanha, a mesma duração. Mas com a longa exceção dos governos de Antonio Salazar e Francisco Franco, existe há pouco mais de meio século.
Nos países escandinavos e na Suiça as democracias têm sido mais estáveis. O regime sobrevive melhor em países pequenos.
Na África, no Oriente Médio e na Ásia democracia é evento pouco provável. Na América Latina, um regime que sobrevive mal ou bem há apenas trinta anos.
Dá azar classificar os países destas regiões como "suíços". O Chile foi chamado de "Suíça da América Latina" um pouco antes do Allende. O Uruguai também, antes da ditadura militar. E o Líbano era a "Suíça" do Oriente Médio antes da guerra civil.
O professor Anthony Downs estudou as condições de sobrevivência e estabilidade dos regimes democráticos no século passado no livro "A Teoria Econômica da Democracia". Concluiu, entre outras coisas, que a sobrevivência dependia da presença de uma grande "maioria silenciosa" no espectro político de uma nação.
A democracia é estável se a distribuição de preferências ideológicas seguir uma distribuição normal - com a maior parte dos eleitores concentrada no centro, que ele chamou de maioria silenciosa, e parcelas menores distribuída nos extremos à direita e à esquerda. A "maioria silenciosa" não tem preferências definidas e claras sobre quais as melhores políticas ou a melhor forma de conduzir a vida pública nacional. Vivem as suas vidas, preocupados com questões locais e individuais. A política não os atrai.
Nesta situação, a melhor estratégia eleitoral é conquistar os eleitores do centro. Se candidatos de direita e esquerda caminham para o centro ganham mais eleitores do que perdem por abandonar os extremos. Os extremos não têm em quem votar, votam no candidato de direita ou de esquerda ainda que estes tenham se caminhado para o centro, mais longe de propostas radicais.
Se a distribuição é bimodal, isto é, se os eleitores se concentram à direita e à esquerda do espectro político sem o miolo da "maioria silenciosa", as eleições serão vencidas alternativamente por esquerdistas e direitistas. O regime será instável. Na ausência de uma "maioria silenciosa" predominante, o regime democrático é ameaçado. O país vai mal e a maioria silenciosa abandona o silêncio e começa a participar.
Quando os militares criaram dois partidos, a Arena e o MDB, estavam seguindo, sem saber, as ideias de Anthony Downs. Nesta situação, os dois partidos precisariam caminhar para o centro e atender a maioria silenciosa - que nos anos 80 lutava pela democracia mas que participara vinte anos antes na Marcha com Deus pela Família e pela Liberdade. Com dois partidos e voto obrigatório, quando e se houvesse eleições, os partidos caminhariam para o centro.
Tem se falado muito sobre reforma política. E tenho lido colunistas, individualistas e libertários pregarem o fim do voto obrigatório. Não lembro de nenhuma justificativa elaborada. Apenas reclamações contra o desconforto de votar a cada dois anos no domingo e a posição de princípio de que o governo não deve interferir na liberdade de cada eleitor que vota ou não, como quiser.
Mas Anthony Downs no seu livro e eu aqui, nesta coluna, achamos a proposta temerária. A extrema direita do Le Pen quase ganhou por causa da abstenção do eleitor francês que viajou no fim de semana. E é bem provável que o brasileiro da "maioria silenciosa" prefira descer para o litoral do que perder o domingo do dia da eleição.
A presença de inúmeros partidos pequenos e de um grande PMDB anódino e sem linha ideológica definida pode ser uma medida da maioria silenciosa no país. Não é um defeito a ser corrigido, a não ser a questão da distribuição dos recursos do Fundo Partidário que acaba incentivando a multiplicação de partidos. Mas uma boa parte dos eleitores troca seu voto por promessas de soluções para problemas regionais, corporativos ou setoriais. E deixa de lado as questões maiores sobre o futuro do país.
Vivemos agora um momento de radicalização - eleitores do PSDB e do PT nos extremos do espectro político (não muito extremos - os dois candidatos prometiam manter os bons programas do outro). Uma vitória e uma derrota apertadas - por alguns pontos percentuais. Não é uma boa notícia. Por isso precisamos do voto obrigatório. Não podemos perder o voto de quem "não está nem aí". São eles que garantem a estabilidade da frágil, delicada e recém inaugurada democracia brasileira.
João Sayad é professor da Faculdade de Economia e Administração da USP