quinta-feira, 25 de agosto de 2011

O Globo 25 agosto 2011.

Vitória sobre militares em 61 iludiu esquerda


LEGALIDADE, 50 ANOS
Apoio popular ao movimento liderado por Brizola para garantir posse de Jango não se repetiu três anos depois
Agência Estado/30-08-1961
Chico Otavio

Na história política do país, foi a única vez que um movimento liderado por civis peitou um golpe militar e derrotou os golpistas. Paradoxalmente, foi também a campanha que criou a ilusão de que os golpistas poderiam ser derrotados mais uma vez. Mas a história não se repetiu.
Está completando 50 anos a Cadeia da Legalidade — movimento desencadeado pelo então governador Leonel Brizola no Rio Grande do Sul para garantir a posse do conterrâneo João Goulart na Presidência da República, após a renúncia de Jânio Quadros, em 25 de agosto. Tudo começou dois dias depois, quando Brizola, entrincheirado no Palácio Piratini, sede do governo estadual, liderou uma cadeia nacional de rádio defendendo o cumprimento da Constituição.
— As esquerdas chamaram a sociedade e ela atendeu, como voltaria a fazer em 1963, no plebiscito que restaurou o presidencialismo. Isso deu a ilusão de que, se a população fosse convocada outra vez, acataria. Mas 1964 era diferente. Não se tratava mais de defender a Constituição, a legalidade, mas as reformas na lei ou na marra, e o lema não mobilizou — avalia o historiador Jorge Ferreira (UFF), autor de “João Goulart, uma biografia”, lançado recentemente.
Meio século após a vitória popular sobre os generais de Brasília, a novidade sobre o episódio é o distanciamento histórico. Sem as paixões políticas que turvavam o entendimento sobre as crises do período, especialistas como Jorge Ferreira apresentam novas visões sobre a semana em que o Brasil mais se aproximou da guerra civil.
Palácio virou um bunker
Do bunker do Piratini, Brizola avisou que não daria o primeiro tiro, mas revidaria com o segundo, o terceiro e o quarto se os golpistas tentassem atacá-lo. Se alguém na ocasião desmereceu a ameaça, fez mal. Para Jorge Ferreira, a força bélica da Legalidade, depois da adesão do III Exército, tinha condições de vencer o restante das forças do país:
— O III Exército (Região Sul) era o mais poderoso dos quatro existentes na época. Havia grande concentração de tropas na fronteira porque os militares não duvidavam que, mais cedo ou mais tarde, a Argentina invadiria o Brasil — explicou Ferreira.
Após dez anos de pesquisa para escrever “João Goulart”, que tem um capítulo dedicado à Rede da Legalidade, o historiador ainda se emociona ao citar uma cena decisiva. Aconteceu em 28 de agosto, quando o comandante do III Exército, general José Machado Lopes, desembarcou com o seu estado-maior em frente ao Palácio Piratini. A tensão era grande pela desconfiança de que o oficial estaria ali para dar voz de prisão a Brizola.
— Comunicações do Exército, interceptadas por aliados de Brizola, davam conta de que a missão de Machado Lopes era essa. Mas quando ele chegou, as cem mil pessoas que lotavam a Praça da Matriz, em frente ao palácio, começaram a cantar o Hino Nacional. E o general, ao subir as escadarias, se virou para a multidão e, mão no peito, passou a também cantar, acompanhado de seus oficias — conta.
Até então, a resistência de Brizola, além da força de suas palavras, se resumia às tropas da Brigada Militar (a PM gaúcha), com suas metralhadoras velhas, armas portáteis e barricadas de sacos de areia.
Antes de continuar, algumas pinceladas de história para facilitar o entendimento. João Goulart, do PTB, estava em visita à China quando Jânio pediu as contas. Em seu lugar, assumiria provisoriamente o presidente da Câmara dos Deputados, Ranieri Mazzilli, mas uma junta formada pelos três ministros militares — general Odílio Denys, brigadeiro Grum Moss e almirante Sílvio Heck — não queria Jango de volta. Defendia o rompimento da ordem jurídica, com o impedimento da posse e a convocação de eleições.
Os oficiais chegaram a dizer que, se o vice-presidente pisasse em solo brasileiro, seria preso. Porém, para que uma posição tão radical se impusesse, seria necessária a mais completa unidade no interior das forças armadas. E, graças a Machado Lopes, isso não aconteceu. Depois do episódio do Hino, ele se reuniu com Brizola para anunciar que, entre a ruptura e a legalidade, ficaria com a Constituição.
É um equívoco, porém, pensar que o general se encantou com o discurso de Brizola, que incendiava as rádios.
— Nunca aderi ao governador Brizola, nem mesmo permiti que sua influência sobre João Goulart perturbasse a solução pacífica da crise política pelo Congresso, quando lembrei ao senhor Goulart a sua palavra, de respeitar as decisões soberanas do Congresso — recordou-se o general, em livro de memórias escrito em 1980.
A imagem de Brizola, de terno e carregando uma metralhadora pelos corredores do Piratini, faz lembrar o presidente chileno Salvador Allende, de capacete e fuzil, resistindo no La Moneda aos ataques das tropas do general Pinochet no golpe de 1973.
A diferença é que o governador gaúcho sairia vitorioso. Isso não apenas lhe deu um inédito protagonismo no PTB, cacifando os setores mais radicais do partido em oposição à liderança histórica de Jango, como o encorajou a ir além.
— Contrário a uma solução negociada, com o aprovação do parlamentarismo, Brizola queria marchar com Jango e o III Exército até Brasília, para fechar o Congresso e convocar uma Constituinte — destaca Jorge Ferreira.
O professor não tem dúvidas do que ocorreria, caso a ideia fosse acolhida:
— A guerra civil.
Mas Jango, que já reduzira a tensão adiando a volta ao Brasil, concordou com a proposta de parlamentarismo, do PSD de Tancredo Neves, e abortou o plano. Quando subiu a rampa do Palácio do Planalto, para a posse em 7 de setembro, a Rede da Legalidade já estava desfeita, envolta numa espécie de anticlimax, sem ter dado um disparo.
 

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