quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Estado acorvadado?

Folha de S. Paulo, 18 de agosto de 2011.

Estado acovardado?

GUILHERME GUIMARÃES FELICIANO



O crime organizado reage às leis e à Justiça -e aqui me penitencio pela aridez da expressão- engendrando "cadáveres excelentes"


Covardia é, segundo os léxicos, tibieza, fraqueza de ânimo. Se Hobbes tratara do "Estado-leviatã" em meados do século 17, supondo-o forte e absorvente pela renúncia de liberdade dos concidadãos a reboque do contrato social, talvez hoje estejamos diante de um fenômeno político reverso: o nascimento de um Estado fraco, reticente, talvez acovardado.
De fato, um Estado "oficial", mas que admite coexistir com ordens paralelas, quiçá protossoberanas, dentro de seu próprio território.
Porque, oficial, consente com seu alter e não o rechaça com o vigor esperado. E porque, sem maiores cerimônias, deixa os seus agentes "oficiais" ao alcance e à mercê de sua nefasta concorrência.
No dia 11 de agosto de 2011-ironicamente, o "Dia da Justiça" (quando se comemora a fundação dos cursos jurídicos no Brasil)- faleceu em Niterói, assassinada, a juíza Patrícia Lourival Acioli, 47. A magistrada era titular da 4ª Vara Criminal de São Gonçalo e fora responsável pela prisão de vários réus acusados de participação em crimes de milícia. Seu nome já constava de lista com doze "alvos marcados" que a polícia fluminense apreendera em janeiro.
O Estado-juiz foi ferido. Seu agente foi eliminado. Como há muito advertia Leonardo Sciacia, estudioso das máfias italianas, o crime organizado reage às leis e à Justiça -e me penitencio pela aridez da expressão- engendrando "cadáveres excelentes".
Patrícia não foi a primeira perda sentida nos quadros da magistratura e do Ministério Público. Infelizmente, não será a última.
Oficialmente, temos hoje cerca de 90 juízes ameaçados de morte no país.
Associações de juízes supõem números bem mais alentados. E, no mundo do dever-ser, a Lei Orgânica da Magistratura Nacional reza, em seu artigo 35, ser dever do magistrado cumprir e fazer cumprir as disposições legais e os atos de ofício, com "independência, serenidade e exatidão". Mas que serenidade se pode esperar de juízes que pagam com a vida pelo exercício das funções? Que independência?
Já tarda a hora em que os Poderes constituídos discutirão com seriedade uma política consistente de segurança judiciária.
Ela precisa considerar inclusive efetivos compromissos de rubrica orçamentária e esforços palpáveis de renovação legislativa (quiçá com a criação de uma genuína polícia judiciária, não apenas para a instrução criminal pré-processual -função já afeta às polícias civis estaduais e federal-, mas para a proteção da atividade, dos agentes e do patrimônio do Judiciário).
As polícias militares já não conseguem cumprir esse papel diante da crescente necessidade de contingente para resguardar a segurança dos cidadãos em geral, fora da esfera pública.
Quando o Estado brasileiro já não conseguir garantir a integridade física e a tranquilidade psicológica dos agentes que o representam na aplicação concreta da lei, não haverá juiz independente. Não haverá Poder Judiciário forte. Não haverá, propriamente, Estado.

GUILHERME GUIMARÃES FELICIANO, juiz titular da 1ª Vara do Trabalho de Taubaté, é presidente da Associação dos Magistrados da Justiça do Trabalho e professor associado do Departamento de Direito do Trabalho e da Seguridade Social da USP.

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