segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

Estado de Exceção no estilo Agamben

O Globo 28 fevereiro 2010.


Conflito de interesses (Opinião)

ROBERTO KANT DE LIMA e LUIZ CÉSAR DE QUEIROZ RIBEIRO_ 


Os acontecimentos recentes entre as forças de segurança pública do Estado do Rio e segmentos vinculados a negócios da chamada criminalidade demandam uma primeira análise crítica. 
Uma primeira constatação: o enfrentamento de criminosos e policiais, com cobertura da imprensa, não é nenhuma novidade na cidade do Rio, com a curiosa coincidência de acontecer próximo a passagens de governos estaduais. Nestas situações, assistimos à integração das forças policiais e armadas, como parte de uma produção imagética de "combate" ao "tráfico", com alta exposição de apetrechos próprios de contextos bélicos. 
Essa situação, que não parece causar estranheza no Rio, não é comum em outras cidades, embora estas também convivam com mercados de armas e drogas ilícitas. No Rio a polícia conta com o apoio de setores da sociedade e da mídia para adotar táticas incisivamente repressivas, inclusive à margem, ou contra a lei. Tais práticas em muito contribuíram para o crescimento deste mercado, bem como para o acúmulo da violência com o crescente armamento. 
Nesta escalada, foi forçoso aos traficantes varejistas buscarem ampliar a arrecadação de recursos para garantir a manutenção de seus negócios, sobretudo diante da crescente oferta de "mercadorias políticas": a "vista grossa"; o "arreglo"; o repasse de narcóticos e armas apreendidos ou a proteção a criminosos, patrocinados por agentes policiais e estatais. Tal fenômeno sinaliza para uma terceira constatação: a viabilização desses negócios exige uma extensa e complexa malha que envolve diversos setores ligados ao Estado e às instituições privadas, operando não apenas à margem da legalidade, mas nas entranhas do aparelho estatal. 
Então, o que há de diferente? Parece possível inferir que estamos assistindo aos espasmos violentos de um mercado em crise, em virtude da transformação do Rio em uma cidade-commodity, ingressando na divisão internacional da indústria global do entretenimento. É uma indústria que demanda que a cidade seja centralmente gerida como territórios de consumo delimitados, organizados e protegidos de possíveis ameaças de desvalorização dos investimentos imobilizados. Como mercadoria, a cidade deve atender às necessidades de consumo de entretenimento promovido pelos megaeventos, como os Jogos Olímpicos e Copa do Mundo. Sua comercialização adequada requer a embalagem da "pacificação", justificando o uso de meios violentos em lugar do Direito. Não se trata da violência para instaurar o chamado Estado de Direito, mas da consolidação de nosso estado de exceção, no qual a gestão da crise social funda-se no uso unicamente da força. 
Os interesses dessa cidade-commo-dity para um público seleto de investidores e consumidores, entretanto, parecem estar causando conflito com outros atores, inclusive aqueles que vêm lutando pela cidade como riqueza social acessível a todos. Um processo complexo, que se choca com a imaginação das elites políticas que, historicamente, representam o direito à cidade e à igualdade como restrito a certos segmentos sociais. Tais segmentos instituem, conforme princípios de uma hierarquia por status, uma desigualdade espacialmente definida na falsa dico-tomia do "morro" e do "asfalto". Assim, os demais segmentos sociais não se concebem partilhando de uma ordem com direitos e deveres iguais, universa-listas e republicanos, como também agentes simetricamente capazes de participar no mercado, de acumular e de multiplicar riquezas, tendo a lei e o judiciário como seus garantidores. 
Enquanto os direitos civis e os serviços públicos forem concebidos como "direitos" privilegiados dos semelhantes e "benesses" a serem concedidas aos diferentes, rotulados como desiguais, o protagonismo estatal, sempre encarnado por seus iluminados administradores e funcionários, limitará a eficácia e o alcance das políticas públicas — cujas "populações-alvo", seguindo uma tradição do pensamento social brasileiro, continuam a ser vistas como obstáculos incivilizados e desordeiros, a serem tutelados fora do mercado e colocados à margem da cidade-com-modity, a ser vendida ao mundo. 


ROBERTO KANT DE LIMA é coordenador do Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos, da Universidade Federal Fluminense. LUIZ CÉSAR DE QUEIROZ RIBEIRO é coordenador do Observatório das Metrópoles, da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

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