segunda-feira, 30 de junho de 2014

Estado caloteiro

Revista Conjuntura Jurídica, 29 de junho de 2014.

Estado de calote

"Brasil trabalha para sustentar a burocracia"

Ao concluir a primeira grande radiografia da advocacia de Estado no Brasil, os editores deste site e da publicação não tiveram dúvida em cravar uma chamada ousada para a obra: “O Novo Quarto Poder”, é a manchete de capa do Anuário da Advocacia Pública do Brasil.
A pujança e a eficiência do braço jurídico da União, dos Estados e municípios, entretanto, é vista com reservas por um dos advogados que, em 57 anos de atuação, mais projeção alcançou na história do Brasil: Ives Gandra Martins. Para ele, o poder público não tem obrigações, só direitos. Situação inversa à dos cidadãos. O tributarista elogia a atuação dos advogados públicos que, segundo ele, fazem um bom trabalho, mas têm um cliente que está acostumado a desrespeitar os direitos do cidadão.
Ícone da defesa da livre iniciativa, defensor ferrenho do capitalismo e adversário feroz do esquerdismo em qualquer tonalidade, Ives Gandra surpreendeu a opinião pública ao criticar publicamente e com eloquência o ‘justiçamento’ dos acusados no mensalão — segundo ele, um conjunto de deliberações movidas e turbinadas pelo clamor público, sem nexo com a doutrina e a jurisprudência. Mas essa tangência eventual com o PT não passa de um ponto fora da curva no universo das ideias desse jurisconsulto.
Convidado a opinar sobre a assimetria nas relações entre o Estado e o cidadão, Ives castiga sem clemência a forma como o governo central exercita o poder. O advogado afirma que o país é tributado para pagar salários do funcionalismo e não para a manutenção do serviço público. O Judiciário, em grande parte, diz ele, se associa na empreitada de buscar receitas que mantenham a máquina burocrática.
Leia a entrevista: 
ConJur — Como o senhor analisa o atual nível das relações entre o Estado e o particular no Brasil? 
Ives Gandra da Silva Martins — Nos Estados Unidos, o presidente Obama — segundo o Torquato Jardim, ex-ministro do TSE — tem 200 cargos em comissão. Outros dizem que um pouco mais. Todos os demais funcionários públicos federais são concursados. No Brasil, com um PIB sete vezes menor, a Presidente Dilma tem 22 mil comissionados. E também um alto índice de corrupção, concussão e peculato que se concentra basicamente entre os cargos em comissão, também chamados de “cargos de confiança”. Muitos dos que aparelham o Estado têm necessidade de viver das benesses que os cargos dão. Isso explica a carga enorme de desvios que a imprensa noticia diariamente. Um exemplo: todos os programas sociais do governo federal consomem R$ 60 bilhões da receita tributária federal, que está em torno de 1trilhão de reais. É o eleitor mais barato. Custa, pois, 6% da arrecadação federal — sendo que a arrecadação global, considerando estados e municípios, está se aproximando dos 2 trilhões de reais. Isso significa que grande parte dos nossos recursos vai para os detentores do poder. Haja vista o déficit da Previdência, sobrecarregado pelos múltiplos benefícios oferecidos ao funcionalismo. 24 milhões de aposentados do povo geram déficit inferior a R$ 50 bilhões, enquanto os do serviço público (em torno de um milhão de beneficiários) superam essa quantia. Os próprios investimentos públicos ficam abaixo dos R$ 100 bilhões. Todo o resto é sugado pela máquina. O governo francês reduziu o número de ministérios para 16. No Brasil são 39. Alguns ministros ficam sem despachar com a presidente da República por meses. Em outras palavras: os cidadãos trabalham para sustentar a burocracia, os detentores do poder, e não o Estado prestador de serviços mínimo. Decididamente, a burocracia brasileira não cabe dentro do PIB.
ConJur — Os direitos e obrigações do cidadão e do Estado são observados simetricamente no Brasil?
Ives Gandra Num país em que se trabalha para sustentar os detentores do poder (carga tributária de 37% no Brasil, contra 31% no Japão e Estados Unidos; 25% na China e na Rússia) é evidente que os direitos dos cidadãos estão sendo pisoteados de forma fantasmagórica por parte do poder público, que é profundamente desleal em relação aos cidadãos. Temos a atuação judicial nas cobranças pretendidas e duvidosos créditos por penhoras on line; recusa de certidões negativas que impedem empresas de entrar em licitações; e privilégios de procuradores da Fazenda Nacional garantidos com honorários de sucumbência de 20% e que conseguem no Judiciário, quando o Poder Público perde, que os honorários sejam de apenas 1% — o que implode o principal princípio de uma democracia, que é o da igualdade. Para o poder público, vale o final do famoso livro de George Orwell, a Revolução dos Bichos, ou seja, todos são iguais perante a lei. Mas alguns são mais iguais que outros.
ConJur — Quais são os principais problemas que o senhor identifica?
Ives Gandra — Para sustentar o gigantismo da máquina burocrática, o governo não hesita em criar regras inescrupulosas para garantir receitas. O que lembra outro pensamento, este do jusfilósofo alemão Konrad Hesse: “A necessidade não conhece princípios”. E, no Brasil, não conhece porque o devedor do Estado é cobrado por todas as formas de coação. Nem sua dignidade é poupada, enquanto o Estado brasileiro é um notório caloteiro. Basta lembrar os precatórios e qualquer execução que tenha por vítima o contribuinte, em que todas as formas de expedientes são usadas por seus adversários. Nos meus 57 anos de exercício profissional, o Brasil se transformou numa república fiscal incomensuravelmente pior do que tínhamos nos tempos da ditadura, quando o contribuinte tinha muito mais direitos, nessa área, que hoje. Os magistrados eram mais independentes. A tal ponto que, quando decidem a favor do contribuinte, receia-se que sejam levantadas suspeitas sobre sua índole e autonomia. Maledicências oficiais que objetivam inibir as decisões contra o Erário. Se o Brasil não destruir a adiposidade malsã da máquina burocrática, ela matará o país, com esses fatores concorrentes que testemunhamos, como a alta da inflação, a queda do PIB, a balança comercial negativa, o balanço de pagamentos estourando, a elevação do risco Brasil e todos os indicadores que deram fundamento ao Plano Real, como o superávit primário, as metas de inflação e o câmbio flexível, que estão sendo projetados para o espaço.
Conjur — Diante desse cenário de abusos, haveria como se reexaminar o poder coercitivo do estado contra o cidadão, em matéria cível?
Ives Gandra Eu tenho a impressão de que a única solução é o voto. Eleger governantes com outra mentalidade. E nós temos, no Brasil, uma tendência de entender que o estado pode tudo e deve fazer tudo. Os políticos entram com essa mentalidade. E o que nós temos visto é um crescimento monumental da máquina administrativa. Então, eu acho que a única revolução que podemos fazer é através do voto e do esclarecimento à população de que nós, escravos da gleba, estamos vivendo em pleno século XXI o que os escravos da gleba viviam na época medieval. Os nossos senhores feudais são os governantes, e nós somos apenas campo de manobra para eles fazerem com os nossos bens o que quiserem. E estamos em um caminho que é mais triste, de apoio permanente aos regimes bolivarianos, onde o cidadão vai perdendo completamente o seu direito de ser. Vê-se, em relação à Venezuela de hoje, à Bolívia, ao Equador, um apoio monumental da atual estrutura governamental, dos atuais detentores do poder. Dizem que o Paraguai é uma ditadura, porque dentro da Constituição só restou um presidente, que depois concorreu ao Senado sem nenhum problema, sem nenhum trauma. Em compensação, a presidente Dilma se deixa fotografar ao lado de Fidel Castro como se estivesse ao lado de um deus. Assassino notório, que matou 17 mil pessoas em paredão, sem julgamento. Uma inversão absoluta. Testemunhamos, gradativamente, uma redução dos direitos de cidadania. Isto, a meu ver, é o grande drama que vamos ter de enfrentar através do voto. É preciso esclarecer o povo, porque as migalhas dos programas sociais têm eleito os governos. E esses programas sociais, na verdade, mantêm, com algumas migalhas, um contingente de votos que permite a perpetuação no poder de pessoas que pensam mais na detenção do poder do que fazer do país um país moderno, competitivo, com condições de concorrência com outros BRICs e, evidentemente, com condições de concorrência com países desenvolvidos. Eu acho muito difícil essa mudança senão através do voto.
Conjur — Este governo tem defeitos próprios, como qualquer outro. Mas a hipertrofia do Estado e a assimetria na relação entre o particular e o Estado, é característica comum de todos os governos desde o tempo do Império, não é? 
Ives Gandra É como um câncer, que existe desde o Império, mas hoje estamos com metástase em todo o organismo social. Se compararmos a hipertrofia no atual governo, com situações similares no passado, vemos que os próprios militares poderiam ser considerados monges trapistas nesse departamento. Há cerca de 20 anos, a carga tributária era de 22%, 23%. É a carga que sustenta a administração pública. Estamos falando da carga tributária que existia em 1992, 1993, na gestão de Itamar Franco. Hoje estamos com uma carga de 37%. Os serviços públicos continuam, se comparado com de outros países, muito ruins. O que ainda funcionou foram os privatizados, rodovias etc.
Conjur — Voltando para o cenário da máquina judiciária. Há casos que chamam a atenção. Houve uma desapropriação de fazendeiros, na área onde foi construída Itaipu, para reforma agrária. Os donos das terras não foram indenizados. Posteriormente, os colonos da reforma agrária, que nem chegaram a plantar, foram desapropriados para criação da represa. Esses colonos foram indenizados. Como se passaram 30 ou 40 anos, o valor do crédito dos fazendeiros ficou enorme. O tamanho da cifra é motivo para não pagar?
Ives Gandra A máquina só funciona contra o cidadão, porque temos um estado aético e caloteiro. É preciso entender isso para compreender a realidade brasileira. Os precatórios: quantas vezes eles mudaram a Constituição para continuar caloteiros? E quando cresce a dívida, fica mais evidente a vocação caloteira do nosso poder público, a vocação aética. Eles dizem: “Não, agora temos de cuidar do interesse público.” Para mim, interesse público não existe. Existe interesse dos detentores do poder. Interesse público é interesse da sociedade. Quem diz: o interesse individual não pode prevalecer sobre o interesse público, está mentindo. O interesse individual é o interesse da sociedade a quem o poder público deveria servir. Mas, na verdade, o poder público, quando fala em interesse público, ele quer dizer: “Pelo meu interesse de detentor do poder, de gastador da máquina burocrática, os valores muito grande nós não devemos pagar. E é o que está acontecendo com os precatórios. O próprio Supremo que decidiu a favor do cidadão com os precatórios teve que colocar “n” condições, e eles não conseguem executar de qualquer forma.
Conjur — E qual é a responsabilidade do Judiciário nesse contexto?
Ives Gandra Eu ouvi de muitos agentes ligados aos defensores do poder público, quando se trata de questões de valor: “De onde é que saem seus recursos, senhores magistrados? Saem da nossa receita.” Há uma manifestação, na imprensa, de uma queridíssima amiga, por quem tenho uma profunda admiração, a ministra Ellen Grace, de que os ministros do STF mereciam aumento, porque tinham garantido uma receita da União como não havia antes. Declaração criticada pela OAB. Ora, a função do Supremo não é garantir receita, é fazer justiça. Então, na prática, esta mentalidade hoje é uma mentalidade não só do Executivo ou do Legislativo, que é um notório desperdiçador de recursos. Há procuradores da Fazenda Nacional que dizem: “Como é que se pode dar aumento de vencimento se as decisões forem contra o Fisco?” E quando procuradores da Fazenda Nacional são assessores de ministros nos tribunais. Quer dizer, eles são procuradores, vão para o tribunal e depois voltam a ser procuradores. Como aconteceu no caso de uma procuradora que era advogada da procuradoria, foi para a assessoria e decidiu no próprio caso em que ela era advogada.
Conjur — Que notícia sairia...
Ives Gandra E a Ordem [dos Advogados do Brasil] levou o caso para o CNJ e o CNJ decidiu, por 11 a 4, que não havia problema nenhum. Hoje se fala em matéria tributária federal e em judiciário independente, quando sabemos que pelo alto número de questões em exame, são os assessores, não concursados, que decidem. Eu fui de banca examinadora de três concursos de magistratura, sendo dois de Magistratura Federal e um de Magistratura Estadual. Examinei o quê? 7 mil ou 8 mil candidatos, para aprovar menos de cem. Exames muito mais difíceis do que qualquer doutoramento, eu tinha pena dos candidatos. Para decidir em primeira instância. Pois nos Tribunais Superiores são não concursados que, na maior parte das vezes, decidem em nome dos Ministros, porque eles não têm mesmo condições de atender a todos os processos. E quando esses assessores são parte — e todo procurador da Fazenda Nacional, não licenciado, é parte, não é magistrado — é evidente que alguma coisa está desequilibrada em nosso sistema.
Conjur — Como é que o senhor vê o uso da rescisória? No caso da Usina de Itaparica, o governo rompeu o compromisso do financiamento da obra. O construtor financiou com seus próprios recursos, o caso foi julgado, o direito à reparação foi estabelecido e transitou em julgado. Na fase da execução, reverteu-se a coisa julgada...
Ives Gandra Mas não é só esse caso. Eu tenho visto a Procuradoria da Fazenda Nacional constantemente entrar com rescisórias depois do trânsito em julgado, porque, na pior das hipóteses, atrasa incomensuravelmente o pagamento. O que vale dizer que esse é um instrumento que tem sido utilizado para não pagar. Porque, como eu disse, o estado brasileiro é naturalmente caloteiro. É duro dizer isso. Costumo dizer que democracia eu terei no dia em que eu chegar para a presidente da República e chamar: “Vossa senhoria, que está a meu serviço.” E ela me disser: “Vossa excelência, a quem eu sirvo.” Porque eu sou cidadão a quem ela serve, e ela está a meu serviço. Mas no Brasil, quando o cidadão vira autoridade, a partir deste momento ela se torna VIP (Very Important People)... Basta dizer, você tem dois tipos de tratamento em qualquer lugar, aeroportos etc, todas as autoridades são VIPs. E nós somos NIPs (No Important People), precisamos ficar em qualquer lugar, apertados, sem condições. Porque o povo está a serviço do governo, que sendo aético diz: “Nós temos o direito de ser caloteiros. Nós temos o direito de ser aéticos. O interesse público é o nosso interesse. Se houver possibilidade, nós fazemos serviços públicos.” Mas não é da essência do exercício do poder o serviço público. Eu tenho um livrinho, “Uma Breve Teoria do Poder.” Você lê lá: o poder é necessariamente aético e quem busca o poder sabe que vai ser aético, vai se identificar com o poder — e no Brasil isso é monumental —, e aí tem todos os direitos. O povo é campo de manobra. E quanto mais, por exemplo, um cidadão tem direito, mas seu crédito é grande, menos chance ele tem de receber. Rescisórias são uma das formas mais fáceis de ir atrasando, porque nunca se aplica ou raramente se aplica ao poder público as penas de litigante de má-fé. Basta entrar com uma rescisória, qualquer juiz suspende imediatamente até que a rescisória seja decidida. Se eu tenho um crédito a receber, suspenso, eu sei que vou levar 10, 12 ou 15 anos para receber aquele crédito, mesmo que eu venha a ganhar.
Conjur — Com a globalização do Direito, surgiram foros internacionais, tribunais aos quais se pode recorrer na área de direitos humanos. Haveria, no campo cível e empresarial, digamos, no direito econômico, como recorrer a algum foro?
Ives Gandra Eu acho que não. Até porque, mesmo nos casos de direitos humanos, você não vê nenhuma decisão internacional ser aplicada no Brasil, nunca foi. E por uma razão muito simples: o artigo 5º, inciso 35, da Constituição, declara que toda lesão pode ser levada ao poder judiciário. O cidadão pode recorrer da decisão internacional e dizer: “Não. Eu tenho o direito de recorrer aqui, porque o crime foi praticado aqui. Por exemplo, a lei da anistia, com aquela ideia de se recorrer à Costa Rica. O que disseram os membros do Supremo: “Pode recorrer ao Tribunal de São José. Mas isso não vai ter valor nunca, porque nós não vamos cumprir.” No caso do Cesare Battisti, o STF disse o seguinte: “Temos que devolver, porque o crime foi praticado lá, o cidadão era de lá, etc.” Se não fosse o Lula, e o Supremo ter fragilizado a sua jurisprudência, ele teria sido imediatamente expatriado e mandado de volta para a Itália.

domingo, 29 de junho de 2014

Bacanal

Folha de S. Paulo, 29 de junho de 2014.

Bacanal eleitoral
As alianças feitas por candidatos a governador apoiados pelos presidenciáveis nos principais Estados
DIÓGENES CAMPANHA PATRÍCIA BRITTO RICARDO MENDONÇA DE SÃO PAULO
 
Em São Paulo, o palanque do governador Geraldo Alckmin (PSDB), candidato à reeleição, será dividido entre dois presidenciáveis: Aécio Neves, do próprio PSDB, e Eduardo Campos (PSB), rival de Aécio na disputa nacional.
Já a presidente Dilma Rousseff ficará dividida entre dois concorrentes no Estado: Alexandre Padilha (PT) e Paulo Skaf, do PMDB, sigla de seu vice, Michel Temer.
No Rio, o quadro é ainda mais rocambolesco. A reeleição de Dilma será defendida por três candidatos a governador que concorrem entre si: Lindbergh Farias (PT), Luiz Fernando Pezão (PMDB) e Anthony Garotinho (PR). Sendo que Pezão também oferece palanque a Aécio, arranjo que lhe renderá mais tempo de TV. E Lindbergh também oferece palanque a Campos.
Situações assim, que misturam concorrentes a governador com o mesmo presidenciável ou presidenciáveis no palanque do mesmo candidato a governador, ocorrem por todo o país.
Contrariado com o espaço de Aécio no palanque de Pezão, o prefeito do Rio, Eduardo Paes (PMDB), apoiador de Dilma, apelidou esse tipo de proliferação de alianças de "bacanal eleitoral". Uma expressão que tem bom potencial para se perpetuar no vocabulário político nacional.
O quadro ao lado, montado com informações de apenas 13 dos 32 partidos e resultados dos acertos já confirmados nos Estados, dá uma dimensão desse novelo.
Cada aliança pode ter sua lógica específica dentro do contexto estadual ou do histórico dos personagens envolvidos. O retrato geral que emerge, porém, é mesmo de uma grande suruba entre as siglas, onde parece inexistir qualquer tipo de coerência ideológica.
Um dos casos mais curiosos ocorre no Maranhão, único Estado onde o PC do B lançou candidato próprio a governador. No Estado, o comunista Flávio Dino defenderá, simultaneamente, os três principais presidenciáveis: Dilma, Aécio e Campos.
PSDB e PSB estão na aliança de Dino. O PT, porém, aliado frequente do PC do B em diversos locais, está formalmente coligado com Lobão Filho (PMDB), o candidato do clã liderado pelo senador e ex-presidente José Sarney.
O PMDB, principal aliado de Dilma no plano nacional, atuará como "traidor" da petista em pelo menos seis Estados. Os peemedebistas Eunício Oliveira (CE) e Paulo Hartung (ES) apoiam só Aécio. Ivo Sartori (RS) e Nelsinho Trad (MS) vão de Campos, exclusivamente. José Filho (PI) dá palanque para Aécio e Campos ao mesmo tempo, mas nada para Dilma.
Na Bahia, o PMDB fechou com Paulo Souto (DEM), rival do PT, que tem seu próprio candidato a governador.
Caso curioso é o de Íris Resende, candidato do PMDB a governador de Goiás que fará palanque duplo para Dilma e Aécio. Seu nome ao Senado na aliança é Ronaldo Caiado (DEM), inimigo histórico do PT. E a chapa também é composta pelo PC do B.
Outra mistura que chama a atenção é a de Helder Barbalho (PMDB), que quer ser governador do Pará. Por ele, PT, DEM e PC do B aparecem reunidos na mesma chapa.

quarta-feira, 25 de junho de 2014

Falência

Fola de S. Paulo, 25 de junho de 2014.

Editoriais

Polícia à beira da falência

O governo do Estado de São Paulo pelo PSDB, que está para inteirar 20 anos, produziu resultados paradoxais na segurança pública. Enquanto os homicídios caem, os roubos se tornam epidêmicos.
A redução da taxa de assassinatos --que flutua entre 10 e 11 por cem mil habitantes desde 2008 e é uma das menores do Brasil-- constitui conquista a celebrar. Não basta, contudo, para afastar a insegurança que acossa os paulistas.
Os homicídios montam a mais de 4.000 por ano, verdade, mas representam um evento relativamente raro. Compare-se com os roubos: média de 230 mil ocorrências anuais na última década, com forte aceleração em 2014. Só em abril foram 27.711 casos, 29,7% a mais que no mesmo mês de 2013.
Muitas causas haverão de explicar o incremento, mas entre elas tem proeminência a ridícula taxa de solução dos casos, inferior a 2%. Esta, por sua vez, tem relação direta com o fato de que meros 9,3% dos boletins de ocorrência lavrados resultam na abertura de inquéritos (para nada dizer da subnotificação, ou seja, dos roubos que não chegam a gerar BOs).
Nada menos que 2,1 milhões de ocorrências, assim, deixaram de ser investigadas nos últimos dez anos. Trata-se de um poderoso desincentivo para que a população se dê ao trabalho --e muito trabalho, sabe bem quem já precisou registrar BO num distrito policial-- de notificar os roubos. Todo o esforço policial cai em descrédito.
As autoridades de segurança pública se comprazem com a explicação imobilizadora: na falta de recursos humanos e materiais, é forçoso selecionar os casos e investigar os mais importantes.
Pior, o delegado-geral da Polícia Civil de São Paulo, Luiz Maurício Blazeck, parece inclinado a corresponsabilizar as vítimas pela diminuta taxa de inquéritos abertos, ao afirmar que precisam incluir mais detalhes no boletim. "A vítima tem que ser um facilitador."
A tentativa de dividir a culpa seria burlesca se não fosse trágica. É a polícia que tem de ser facilitadora da vida dos cidadãos; as vítimas são vítimas, e em parte por causa da inapetência das forças de segurança pela investigação séria.
Se faltam braços e cérebros, é por obra do governo estadual, não dos contribuintes. Em 2005, o Estado tinha 314 policiais por 100 mil habitantes; em 2013, eram 282.
Mesmo com o efetivo atrofiado, a polícia paulista colheu a redução dos homicídios, mas fracassa na contenção dos roubos. Isso só reforça a hipótese de que os êxitos se devem a fatores pouco relacionados com a eficiência policial.

segunda-feira, 23 de junho de 2014

Boletim de (não) ocorrência

Folha de S. Paulo, 23 de junho de 2014.

Polícia Civil só investiga 1 a cada 10 roubos em SP
Em dez anos, 9,3% dos boletins de ocorrência resultaram em inquéritos
Governo estadual afirma que registro de queixa não é elemento suficiente para iniciar apuração sobre crime
MARINA GAMA CUBAS DE SÃO PAULO
 
A Polícia Civil de São Paulo só abre inquéritos para investigar um em cada dez roubos registrados no Estado.
Dados obtidos pela Folha por meio da Lei de Acesso à Informação mostram que, entre 2004 e 2013, apenas 9,3% do total de boletins de ocorrência desse tipo de crime resultaram na abertura de investigação formal.
Com isso, mais de 2 milhões de casos foram deixados de lado no período.
Só em 2013, quando São Paulo bateu recorde de roubos, 232 mil boletins de ocorrência registrados pela população não tiveram a abertura de inquérito prevista pelo Código de Processo Penal.
A situação é pior na capital paulista, onde, em média, 5,9% desses crimes foram formalmente investigados nos últimos dez anos.
Especialistas ouvidos pela Folha afirmam que a abertura de inquérito é obrigação legal e que a falta dela aumenta a sensação de insegurança e a criminalidade.
O governo Geraldo Alckmin (PSDB) afirma que o boletim de ocorrência por si só não é elemento suficiente para abrir um inquérito (leia texto na pág. C3).
O aumento dos crimes contra patrimônio tem sido um dos principais motivos de críticas à gestão tucana. O número de roubos teve 11 altas consecutivas até abril tanto no Estado como na capital.
O secretário da Segurança Pública, Fernando Grella Vieira, afirmou se tratar de um problema nacional e propôs alterações na legislação.
Em relação aos roubos de veículos, os dados obtidos pela Folha apontam que a quantidade de investigações é ainda menor. Apenas 5% das ocorrências resultaram na abertura de inquéritos no Estado nos últimos dez anos.
Para Theo Dias, professor de direito da FGV e especialista em segurança pública, trata-se de um tipo de crime de mais fácil apuração. "O policial tem como procurar desmanche e padrões de conduta. Um mesmo grupo rouba 30, 40, 50 veículos."
Com a justificativa de reduzir esse tipo de crime, Alckmin sancionou neste ano uma lei que visa acabar com a venda irregular de peças de veículos. Ela deve passar a valer em julho e prevê uma série de exigências para quem quer exercer essa atividade de forma regular.
Policiais ouvidos pela reportagem sob condição de anonimato dizem conhecer a obrigatoriedade da abertura de investigação, mas alegam que, por falta de estrutura, escolhem quais casos terão ou não inquéritos instaurados.
O efetivo da Polícia Civil paulista caiu de 32.809 para 29.517 em dez anos --uma redução de 10%.
"A autoridade policial que tiver conhecimento de roubo tem por obrigação legal instaurar inquérito policial", diz o jurista Roberto Delmanto, em referência ao artigo 5º do Código de Processo Penal.
"O delegado não pode arquivar boletins de ocorrência. Ele é obrigado a instaurar inquérito e investigar", afirma Thiago Bottino, advogado e professor da FGV-RJ.
"Quando se abre [um inquérito] é porque há autoria conhecida ou é caso de repercussão. Mas, se você é roubado na rua, não se abre inquérito na maioria das vezes", diz Guaracy Mingardi, especialista em segurança pública.
Para o delegado Jésus Barreto, chefe adjunto da Polícia Civil de Minas e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, há falhas na gestão da segurança pública.
"As polícias civis do Brasil foram alvo de poucos investimentos, não só econômicos, mas de sua capacidade operacional. As pessoas discutem muito se a lei é eficaz, rigorosa ou não, mas antes disso há um problema muito sério de gestão pública."

sábado, 21 de junho de 2014

"Suruba" partidária

O Globo, 21 de junho de 2014.

Orgia partidária

Merval Pereira
Os últimos dias para a definição das coligações partidárias estão produzindo um quadro esquizofrênico de alianças que tem na união do PSB com o PT no Rio de Janeiro seu melhor exemplo.

Um candidato petista regional tendo o apoio de um candidato de oposição a nível nacional é uma mistura explosiva. Houve até quem pensasse num primeiro momento que a coligação seria um sinal de que há nos bastidores uma reaproximação entre Eduardo Campos e o PT, já que Lula, e não Dilma, é o fiador da candidatura de Lindbergh ao governo do Rio.
Mas essa teoria da conspiração esbarra no acordo feito pelo mesmo Eduardo Campos em São Paulo, apoiando Geraldo Alckmin do PSDB. Não é à toa que o Rio de Janeiro é o palco de alianças heterodoxas, como a que já existe na informalidade entre o PMDB e o PSDB.
Essa união, aliás, só não se oficializa por que o DEM insiste na candidatura de Cesar Maia, mais por respeito à história do ex-prefeito do que por uma estratégia eleitoral. A união com o PT do Rio terá pouca importância para o PSB, ao contrário da coligação armada em São Paulo, que dará o lugar de vice do governador Geraldo Alckmin ao partido, com o potencial de vir a governar o estado caso Alckmin se reeleja e ao final do mandato se desincompatibilize para disputar outro cargo.
No Rio, o candidato ao Senado será o deputado federal Romário, que com a desistência de Jandira Feghali passa a ser o favorito para a vaga, numa disputa acirrada com o ex-governador Sérgio Cabral, que pode até mesmo desistir da candidatura devido a esse quadro novo que se desenha.
Em nenhum dos dois casos, no entanto, o número 40 do partido poderá aparecer na propaganda de rádio e televisão, o que garante a primazia para a presidente Dilma no Rio e para Aécio Neves em São Paulo.
Como ninguém que está nesse jogo é ingênuo é possível que exista um movimento do PSB para interpretar a legislação eleitoral de maneira mais flexível, permitindo que a coligação estadual apoie outro candidato a presidente que não o oficial.
Mesmo que isso não ocorra formalmente, veremos uma série de combinações paralelas juntando o candidato do PSB Eduardo Campos ao governador Geraldo Alckmin do PSDB e ao candidato do PT Lindbergh Farias. Assim como no Rio a chapa apelidada de Aezão (Aécio Neves e Pezão) já é uma realidade local.
Mesmo que seja verdade que Aécio Neves apoia desde o primeiro momento a adesão do PSB à coligação do PSDB em São Paulo, não há dúvida de que essa adesão é uma questão delicada na geopolítica paulista, fundamental para todos os candidatos.
Esse movimento deve fortalecer, por exemplo, a candidatura a vice de um representante paulista do PSDB para ser o coordenador da campanha nacional junto à campanha estadual. O senador Aloysio Nunes Ferreira seria o nome mais indicado, por ser do grupo de José Serra e ligado ao governador Alckmin.
A situação era melhor para o candidato tucano quando havia um entendimento melhor entre ele e o candidato do PSB, um acordo tácito de apoio mútuo. Existe a possibilidade, porém, de que esse relacionamento mais próximo volte a interessar a Eduardo Campos, e há informações de que ele estaria propondo novamente acordos regionais mais amplos, apoiando o candidato tucano em Minas em troca de um acordo no Espírito Santo, onde o governador do PSB Renato Casagrande tenta a reeleição.
Se Campos realmente estiver disposto a refazer as pontes em direção ao PSDB, estará se distanciando de sua vice Marina Silva, que perdeu a disputa em São Paulo e também no Rio, pois defendia a candidatura própria nos três principais colégios eleitorais do país, inclusive em Minas, onde a tese ainda prevalece.
A verdade é que esses acordos firmados à última hora refletem a política nossa de todos os dias, onde o programático cede lugar ao pragmático. Às vezes com certos exageros, como frisou o deputado Alfredo Sirkis do PSB ao anunciar que abre mão de se candidatar nas próximas eleições para não participar do que chamou de uma “suruba” partidária.

Caracas IV ?

Folha de S. Paulo, 21 de junho dee 2014.

Demétrio Magnoli
O 'povo organizado'
A finalidade do Decreto 8.243 é moldar uma 'sociedade civil' adaptada às estratégias de poder do governo 

O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) converteu-se numa linha de montagem de artefatos ideológicos. Entre tantos países, escolheu a Venezuela chavista como sede de sua única filial no exterior. Num relatório produzido pela filial, lê-se o seguinte: "O modelo bolivariano afasta-se, sem dúvidas, da democracia representativa despolitizadora que predomina ainda hoje no mundo. Supera o modelo idealizado pelos pais fundadores da república norte-americana". As duas frases ajudam a decifrar o sentido do decreto presidencial que instaura a "democracia participativa".
As palavras cruciais são "democracia representativa despolitizadora". De fato, o princípio da representação sustenta-se sobre o pressuposto de que os cidadãos têm outros afazeres além da política. A maioria esmagadora das pessoas consagra o seu tempo ao trabalho produtivo, aos estudos, ao lazer, aos afetos e aos amores. Os militantes políticos, pelo contrário, dedicam-se essencialmente à carreira política, que enxergam como fonte de poder, prestígio, dinheiro ou (raramente) como ferramenta para a "reforma do mundo". O Decreto 8.243, dos "conselhos participativos", procura reduzir a abrangência da "democracia representativa despolitizadora". É um golpe dos militantes políticos contra as pessoas comuns, cuja "participação" perde valor nos centros de decisão de políticas públicas.
O conceito de sociedade civil (ou "esfera pública") é objeto de complexas discussões filosóficas, mas existe um consenso básico enunciado por Habermas: a autoridade estatal não faz parte dela. O governo brasileiro, contudo, baixou um decreto que oferece uma definição oficial de sociedade civil ("o cidadão, os coletivos, os movimentos sociais institucionalizados ou não institucionalizados, suas redes e suas organizações"). Em todo o debate sobre o Decreto 8.243 não há nada mais chocante do que a ausência de um grito coletivo de indignação da sociedade civil diante dessa suprema arrogância estatal. No Brasil, o Estado nasceu antes da nação e, de certo modo, a esculpiu segundo suas conveniências. Uma prova da persistente fragilidade de nossa sociedade civil encontra-se nesse silêncio --e, mais ainda, na recepção calorosa do decreto por intelectuais que ganham a vida falando sobre a sociedade civil.
A finalidade do Decreto 8.243 é moldar uma "sociedade civil" adaptada às estratégias de poder do governo: o "povo organizado", no dialeto dos militantes. Na prática, a seleção dos "coletivos" e "movimentos sociais" com assento nos "conselhos participativos" equivale à atribuição de rótulos de legitimidade oficial a determinadas lideranças sociais. Sob o lulopetismo, o Estado não apenas define a sociedade civil, mas também traça os seus contornos, excluindo os "indesejáveis" da esfera pública. "Participação"? Não: a "democracia participativa" pretende restringir a fiscalização social do Estado aos associados ideológicos do governo.
O Decreto 8.243 nasce no solo arado pela crise de legitimidade do sistema político-partidário e pela desmoralização do poder parlamentar. A "sociedade civil" que o decreto delineia tem a vocação de operar como um parlamento paralelo. Gilberto Carvalho, nomeado secretário-geral da "sociedade civil" estatizada, não mente quando diz que o embrião dessa "democracia participativa" já existe, na forma de "conselhos" e "conferências nacionais" controlados por "movimentos sociais" financiados, direta ou indiretamente, pelo governo.
No final do segundo mandato de Lula, realizou-se a Conferência Nacional de Comunicação (Confecom), um encontro desses "movimentos sociais" promovido pelo governo. A Confecom aprovou o "controle social da mídia" --isto é, no dialeto dos militantes, a censura à imprensa. Para florescer, a "sociedade civil" estatizada precisa amordaçar a sociedade civil.

Samba do crioulo doido

Folha de S. Paulo, 21 de julnho de 2014.

Sai PSD, entra PSB

Depois de flertar com o ex-prefeito Gilberto Kassab (PSD), o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin (PSDB), decidiu reservar ao PSB o posto de vice em sua chapa para disputar a reeleição.
A escolha de um correligionário do pré-candidato à Presidência Eduardo Campos provocou desconforto nos dois lados. Para a campanha do mineiro Aécio Neves (PSDB), a presença de um partido rival na chapa tucana em São Paulo não é uma boa notícia.
Embora as duas legendas devam confluir num segundo turno, por ora seus indicados disputam a condição de principal adversário da presidente Dilma Rousseff (PT) --a ampla dianteira, segundo as pesquisas, é de Aécio.
Do ponto de vista de Campos, a aliança teria, em tese, mais vantagens, por propiciar visibilidade perante o maior eleitorado do país e uma chance real de participar da administração do Estado, pois Alckmin é o favorito no pleito.
Campos, todavia, enfrenta renitente oposição de sua vice, Marina Silva, que se manifesta a favor de candidaturas próprias em Estados mais importantes na expectativa de acumular forças para consolidar uma "terceira via" no tabuleiro bipolar da política nacional.
Aliados da ex-senadora já deram sinais de que ela não participará de palanques ao lado do atual governador paulista.
Ainda resta a possibilidade de um acerto tríplice em São Paulo, que poderia reservar a candidatura ao Senado para o PSD. Essa hipótese, no entanto, esbarra no aparente interesse do tucano José Serra em ocupar tal vaga. Para liberá-la, o ex-governador paulista teria que se contentar com a disputa para deputado federal.
Nessa confusa movimentação em busca de coligações --o PSB também apoiará o PT no Rio de Janeiro--, resta patente o quanto a política partidária no Brasil segue fisiológica e gelatinosa. Compreende-se que, num país com grandes dimensões e questões regionais relevantes, não haja sintonia entre as alianças em âmbito federal e aquelas que se selam em Estados e municípios.
O que se assiste a cada pleito, porém, vai além de discrepâncias aceitáveis. Prevalece, em todos os planos, o interesse de ocasião, a busca paroquial de vantagens, o oportunismo travestido de realismo político e o desprezo por um mínimo de coerência programática.

quarta-feira, 18 de junho de 2014

Previsível

Previsível

O Globo 18 de junho de 2012
Um final previsível
Ilimar Franco, O Globo
As sindicâncias solicitadas pela Comissão Nacional da Verdade às três Forças Armadas concluíram que não houve desvio de finalidade em sete instalações militares onde ocorreram graves violações aos direitos humanos durante a ditadura militar.
Apesar de terem sido conduzidas isoladamente, as investigações no Exército, na Marinha e na Aeronáutica chegaram ao mesmo resultado.
As sindicâncias respondem a perguntas feitas pela Comissão da Verdade sobre recursos e funcionários dessas instalações. A comissão pediu que fosse apurado o desvio de finalidade, porque é uma infração imprescritível.
Tentou, mesmo que de forma lateral, forçar os militares a se pronunciarem. Por isso, as perguntas foram direcionadas a instalações específicas, entre elas o DOI-Codi do Rio e a Base Aérea do Galeão, onde se sabe que houve tortura.
Os três relatórios não citam, em momento algum, nome de vítimas da ditadura, nem fazem qualquer comentário sobre graves violações aos direitos humanos.

terça-feira, 17 de junho de 2014

Caracas III ?

Folha de S. Paulo, 16 de junho de 2014.

Luiz Felipe Pondé
U.B.S.S
Por que não entramos nas contas do MST e MTST e descobrimos quem banca toda essa festa?
 
União Brasileira Socialista Soviética. Piada de mau gosto mesmo, também acho, mas a pena mesmo é que a discussão política entre nós seja da idade da pedra e o socialismo ainda seja levado a sério. A piada de mau gosto mesmo é que estamos à beira de um golpe de Estado invisível no Brasil.
O leitor e a leitora já estão a par do decreto do governo que institui a Política Nacional de Participação Social e o Sistema Nacional de Participação Social? Trata-se de decreto para aparelhar movimentos como o MST (gente que quer tomar a terra alheia), o MTST (gente que discorda da ideia de que se deve pagar pelo teto em que mora) e outros movimentos que englobam gente "sem algo" e acham que a sociedade deve dar pra eles. Esses grupos darão um golpe de Estado invisível. Tudo fruto, é claro, de setores do PT radical e os raivosos ex-PT, hoje em pequenos partidos.
Esse decreto é um golpe de Estado sem dizer que é. Lentamente, os setores mais totalitários do país, amantes de ditaduras do proletariado (ou bolivarianas) voltam à cena no Brasil. Comitês como esses tornam os poderes da República reféns de gente que passa a vida sendo profissional militante. Quando você acordar, já era, leis serão passadas sem que você possa fazer algo porque estava ocupado ganhando a vida.
Pergunte a si mesmo uma coisa: você tem tempo de ficar parando a cidade todo dia, acampando em ruas todo dia, discutindo todo dia? Provavelmente não, porque tem que trabalhar, pagar contas, levar filhos na escola, no hospital, e, acima de tudo, pagar impostos que em parte vão para as mãos desses movimentos sociais que se dizem representantes da "sociedade".
Mas a verdade é que a maioria esmagadora de nós, a "sociedade", não pode participar desses comitês porque não é profissional da revolução.
Tais movimentos que se dizem sociais, que afirmam que as ruas são deles, mentem sobre representarem a sociedade. Mesmo greves como a do metrô, capitaneada por uma filial do PSTU, não visa apenas aumentar salários. Visa instaurar a desordem para que o Brasil vire o que eles acham que o Brasil deve ser.
Afinal, de onde vem a grana que sustenta essa moçada dos movimentos sociais? A dos sindicatos, sabemos, vem dos salários que são obrigatoriamente onerados para que quem trabalha sustente os profissionais dos sindicatos. Mas, até aí, estamos na legalidade de alguma forma. Mas e os "sem-Macs" ou "sem-iPhones", vivem do quê? Quando os vemos na rua, não parecem estar passando fome e frio como dizem que estão. Essa gente é motivada e sustentada de alguma forma.
Por que não se exige entrar nas contas do MST e MTST e descobrir de onde vem a grana deles? Quem banca toda essa estrutura militante? Temo, caro leitor e cara leitora, que sejamos nós, os mesmos que eles consideram inimigos, a menos que concordemos com eles.
Uma das grandes mentiras desses movimentos sociais é dizer que combatem a "elite econômica", que, aliás, em dia de greve, fica em casa porque não precisa de fato se virar pra ir trabalhar.
Quem sofre com esses movimentos que arrebentam o cotidiano é gente que perde o emprego, perde o negócio, perde a vida se fica parada no trânsito ou na fila. É gente que, quando muito, anda de carro 1.0, não gente que anda de helicóptero.
É diarista, empregada doméstica, porteiro de prédio, professor, estudante sem grana e que tem que pagar a faculdade, não riquinhos da zona oeste paulistana que fazem sociais para infernizar a vida dos colegas.
É médico que tem três empregos, é dona de casa que cuida de filhos e trabalha fora, é trabalhador da construção civil, é gente "mortal", comum, que não pode se defender dos caras que fecham a cidade dizendo que fazem isso em nome do "povo".
Os movimentos sociais têm demonstrado seu caráter autoritário. Pensam que as ruas são o quintal de seus comitês, que aparelharão os poderes da República.
Se não bastasse isso tudo, vem aí o controle social da mídia. Dizer que será apenas para evitar monopólios é achar que somos idiotas. Veja o que aconteceu na Argentina.

domingo, 15 de junho de 2014

Caracas II?

Folha de S. Paulo, 14 de junho de 2015.

Carlos Velloso

Conselhos sociais ferem autonomia dos Poderes?


Participação sim, mas com base na lei

O decreto nº 8.243, que institui a Política e o Sistema Nacionais de Participação Social, tem sido debatido por juristas, economistas, jornalistas e sociólogos, o que demonstra que a sociedade brasileira, pelo menos no que diz respeito aos que pensam, está atenta às ações do governo. Isso é salutar.
A indagação que deve ser feita, primeiro que tudo, é se a presidente Dilma Rousseff, ao editar o decreto que institui Política e Sistema Nacionais de Participação Social e cria órgãos e institutos viabilizadores dos mesmos, poderia fazê-lo ao largo da lei.
Esclareça-se: não há, de regra, na ordem constitucional brasileira, o regulamento autônomo. Em termos de delegação legislativa (casos em que o Executivo edita ato legislativo em sentido material), temos a medida provisória e a lei delegada, o que, convenhamos, não é pouco.
Em duas hipóteses, a Constituição autoriza, excepcionalmente, o decreto autônomo, com força de lei: (a) organização e funcionamento da administração federal, quando não implicar aumento de despesa nem criação ou extinção de órgãos públicos (mero aperfeiçoamento, pois, da burocracia); e (b) extinção de funções ou cargos públicos, quando vagos (art.84,VI,"a" e "b").
O decreto nº 8.243 invoca, como suporte de legitimação, o art. 84, IV e VI, "a", e os arts.3º, caput, inc. I e 17 da lei nº 10.683/2003. O inc. IV justamente deixa expresso que os decretos são para fiel execução das leis. A alínea "a" do inciso VI autoriza o decreto autônomo, nas situações acima mencionadas.
Ora, o decreto nº 8.243 institui Política e Sistema Nacionais de Participação Social, criando uma série de órgãos, mecanismos e diretrizes, sob a coordenação da Secretaria-Geral da Presidência da República. E quanto aos arts. 3º e inc. I, e 17 da lei nº 10.683, o que se tem ali é forma de funcionamento da Secretaria-Geral e da Controladoria-Geral da União, irrelevantes, no caso.
Ilustre sociólogo, adepto da participação popular, invoca o art. 204/CF. Entretanto, esse dispositivo constitucional diz respeito a ações na área da assistência social, seção do capítulo da seguridade social, não sendo dispensada lei regulamentadora. Não menos ilustre economista justifica o decreto a partir de seu mérito --imprime caráter participativo à democracia. Todavia, essa participação, com a criação de políticas públicas e órgãos públicos, somente a lei, expressão da vontade geral, pode fazê-lo. Ruim com o Congresso, pior sem ele.
Democracia direta? Bom seria se ela fosse possível, tal como praticada em Atenas. Devemos instituir, é certo, na democracia possível, a representativa, mecanismos de participação do povo. Já temos alguns, como, por exemplo, a ação popular, o exame das contas municipais pelos contribuintes (art. 31, §3º), a possibilidade de o cidadão denunciar irregularidades ou ilegalidades perante o Tribunal de Contas da União (art. 74, §2º).
A Constituição estabelece a forma de exercício da soberania popular e indica os caminhos para a participação direta: plebiscito, referendo, iniciativa legislativa popular, na forma da lei. Aos que justificam, de boa-fé, ações do Executivo à revelia e em detrimento do Legislativo, recomenda-se a leitura do lúcido artigo de Bolívar Lamounier, "O bebê e a água do banho" (Folha, 21/3/07). O título é divertido, o tema é sério.
Afinal, temos Estado democrático de Direito, onde governo e povo somente agem com base na lei e na Constituição, submetendo-se, todos, à jurisdição. Fora daí, tem-se o famigerado constitucionalismo denominado bolivariano, no qual vale a vontade do príncipe, e não a da lei.
CARLOS MÁRIO DA SILVA VELLOSO, 78, ex-presidente do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal Superior Eleitoral, professor emérito da Universidade de Brasília (UnB) e da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas, é advogado

sexta-feira, 13 de junho de 2014

Caracas?

Folha de S. Paulo, 13 de junho de 2014.

Reinaldo Azevedo
Dilma de Caracas
A presidente resolveu dar uma banana ao Congresso e, em vez de projeto de lei, mandou logo um decreto 

Com alguma impaciência, noto que há certos analistas com muita opinião e nenhuma memória. É claro que se pode ter uma sem outra. E outra sem uma. Memória sem opinião é banco de dados. Opinião sem memória é tolice. Trato do decreto comuno-fascistoide de Dilma Rousseff, o 8.243, que institui a tal "Política Nacional de Participação Social" e entrega parte da administração federal aos "movimentos sociais", num processo de estatização da sociedade civil.
Sempre que alguém especula sobre a crise da democracia representativa, procuro ver onde o valente esconde o revólver. O assunto voltou a ser debatido nos últimos dias em razão do decreto, que chega a definir, Santo Deus!, o que é sociedade civil. E o faz com a ousadia do autoritarismo temperado pela estupidez. Lê-se lá: "Sociedade civil - o cidadão, os coletivos, os movimentos sociais institucionalizados ou não institucionalizados, suas redes e suas organizações". Quando um governo decide especificar em lei que o "cidadão" é parte da sociedade civil, cabe-nos indagar se é por burrice ou má-fé. Faço a minha escolha.
O "indivíduo" só aparece no decreto para que possa ser rebaixado diante dos "coletivos" e dos "movimentos sociais institucionalizados" e "não institucionalizados", seja lá o que signifiquem uma coisa, a outra e o seu contrário. Poucos perceberam, como fez Oliveiros S. Ferreira, em artigo publicado em "O Estado de S. Paulo", que o Decreto 8.243 institui uma "justiça paralela" por intermédio da "mesa diálogo", assim definida: "mecanismo de debate e de negociação com a participação dos setores da sociedade civil e do governo diretamente envolvidos no intuito de prevenir, mediar e solucionar conflitos sociais".
Ai, ai, ai... Como a Soberana já definiu o que é sociedade civil, podemos esperar na composição dessa mesa o "indivíduo" e os movimentos "institucionalizados" e "não institucionalizados". Se a sua propriedade for invadida por um "coletivo", por exemplo, você poderá participar, apenas como uma das partes, de uma "mesa de negociação" com os invasores e com aqueles outros "entes". Antes que o juiz restabeleça o seu direito, garantido em lei, será preciso formar a tal "mesa"...
Isso tem história. No dia 19 de fevereiro (http://abr.ai/1lkunwF), o ministro Gilberto Carvalho participou de um seminário sobre mediação de conflitos. Com todas as letras, atacou a Justiça por conceder liminares de reintegração de posse e censurou o Estado brasileiro por cultivar o que chamou de "uma mentalidade que se posiciona claramente contra tudo aquilo que é insurgência". Ou por outra: a insurgência lhe é bem-vinda. Parece que ele tem a ambição de manipulá-la como insuflador e como autoridade.
Vocês se lembram do "Programa Nacional-Socialista" dos Direitos Humanos, de dezembro de 2009? É aquele que, entre outros mimos, propunha mecanismos de censura à imprensa. Qual era o "Objetivo Estratégico VI" (http://abr.ai/1lkLvSS)? Reproduzo trecho:
"a- Assegurar a criação de marco legal para a prevenção e mediação de conflitos fundiários urbanos, garantindo o devido processo legal e a função social da propriedade.
(...)
d- Propor projeto de lei para institucionalizar a utilização da mediação como ato inicial das demandas de conflitos agrários e urbanos, priorizando a realização de audiência coletiva com os envolvidos (...) como medida preliminar à avaliação da concessão de medidas liminares (...)"
Dilma resolveu dar uma banana para o Congresso e, em vez de projeto de lei, que pode ser emendado pelos parlamentares, mandou logo um decreto. As Polianas que fazem o jogo dos contentes acusam os críticos do decreto de exacerbação retórica e dizem que a trajetória do PT não revela tentações bolivarianas. Não? Fica para outra coluna. Nego-me a ignorar o que está escrito para ser árbitro de intenções. Pouco me interessa o que se passa na alma do PT. Eu me ocupo é dos fatos. Dilma tem de recuar. Brasília não é Caracas.

quarta-feira, 11 de junho de 2014

Risco Moral

Folha  de S. Paulo, 11 de junho de 2014.

Punições descarriladas

Predileção nacional por multas pesadas que nunca são cumpridas estimula a insistência nos abusos, como na greve dos metroviários 

A ilegalidade compensa. Não há outra conclusão a extrair do fato de que a Justiça do Trabalho raramente arrecada as multas que ela própria aplica aos sindicatos que promovem greves julgadas abusivas, como no caso da paralisação do metrô de São Paulo.
No domingo (8), o Tribunal Regional do Trabalho (TRT) determinou a volta dos metroviários e engenheiros do metrô ao trabalho. Impôs também a seus sindicatos multas que superam R$ 1 milhão.
O valor soa suficientemente oneroso para desincentivar, como deve ser, a leviandade com que metroviários (e também motoristas de ônibus) têm abusado de recurso que deveria ser o último, mormente em serviços essenciais.
No entanto, entrou na moda paralisar a maior cidade do país com a finalidade de obter vantagens salariais. Copa do Mundo e eleições oferecem, sem dúvida, oportunidade única para pressionar governantes e empregadores. Mas isso não isenta os grevistas de observar limites em seus movimentos.
Um deles é a garantia de atendimento mínimo à população, e isso não ocorreu no caso do metrô. Ao contrário, moradores da Grande São Paulo se viram imensamente prejudicados, muito embora não tivessem nada a ver com as disputas trabalhistas. Em certo sentido, foram transformados em reféns.
Os desembargadores, portanto, não tinham como chegar a outro veredicto. Em aberto desafio ao Poder Judiciário, contudo, o sindicato dos metroviários manteve a greve. Só a interrompeu quando ela já se esvaziava --e após o Metrô demitir 42 grevistas. As multas, ao que parece, não assustam mais ninguém.
A razão é óbvia, como mostrou reportagem desta Folha: o próprio Tribunal Superior do Trabalho, após avaliar recursos judiciais, suspende as punições pecuniárias. A última multa aplicada pelo TRT aos metroviários, em 2007, de R$ 200 mil, terminou dessa forma excluída pelo TST dois anos depois.
Campeia, assim, o que em literatura econômica se chama de "risco moral": as frequentes exceções às normas incitam seu descumprimento. Sai mais barato arriscar do que obedecer. Essa é a praxe no Brasil, e não só no Judiciário.
Um levantamento do Tribunal de Contas da União (TCU) demonstrou que a praga assola também o Executivo. De 2008 a 2012, 1,4 milhão de multas lavradas por 17 órgãos federais arrecadaram R$ 2,7 bilhões de um total de R$ 46,8 bilhões (ou risíveis 5,8%).
Claro está que os autuados, todos, têm direito de recorrer das sentenças, mesmo porque elas próprias podem ser exageradas. As leis deveriam ser mais objetivas nos critérios para a aplicação de multas, de maneira a restringir o poder discricionário de quem as decide.
A análise dos recursos, no entanto, tem de ser mais expedita e não pode dar margem ao deplorável jogo de aparências em que o poder público faz pose de rigoroso e ninguém resulta de fato punido.

segunda-feira, 9 de junho de 2014

Semianarquia

Folha de /S. Paulo, 9 de junho de 2014.

Rubens Ricupero
Sociedades anárquicas

Brasil deve acompanhar o risco contido nos graves precedentes de violação da ordem internacional
O que há de comum entre grevistas que desobedecem ordem judicial de assegurar serviço mínimo à população e a anexação da Crimeia pela Rússia? Ou entre os sem-teto que ocupam prédios e interrompem o trânsito e a concentração intimidatória de tropas na fronteira com a Ucrânia?
Em todos os casos, trata-se de grupos que julgam defender causa justa e talvez seja verdade, mas decidem agir "na lei ou na marra", obter seu direito "por la razón o por la fuerza", como dizia o lema chileno.
Em outros termos, nessas situações de conflito, um dos lados, o mais forte por natureza ou circunstâncias (proximidade eleitoral, realização da Copa), recorre à força por não crer na lei, devido a suas imperfeições ou pela demora e dificuldade de obter justiça. Os que assim agem perdem a razão que tinham; ao entrar no jogo da violência arriscam-se a serem as próximas vítimas.
Caminham para a anarquia as sociedades onde as violações são toleradas até pelas autoridades como comportamento rotineiro.
Uma das explicações do desassossego carregado de apreensão que toma conta da população brasileira provém do sentimento difuso de que estamos aos poucos escorregando rumo à anarquia.
Dizem os juristas que a sociedade internacional é anárquica. Não por lhe faltar a lei da Carta das Nações Unidas ou mecanismos de solução legal de conflitos como a Corte da Haia. O problema é que não existe poder ou autoridade capaz de obrigar os países a cumprir a Carta ou as decisões do Conselho de Segurança ou da Corte.
Nações de tradição autocrática, como a Rússia, tendem a violar as leis próprias e as alheias. Já a sociedade brasileira, semianárquica internamente, pois só consegue aplicar as leis de modo parcial e imperfeito, sempre se distinguiu no plano externo pela promoção e defesa do direito internacional.
É por isso que o Brasil deve acompanhar com atenção o risco contido nos graves precedentes de violação como os que vêm ocorrendo na Ucrânia. Pode ser que seja caso isolado, um mero acerto de contas com o passado. Ou pode anunciar tendência de comportamento futuro dos mais fortes no novo sistema internacional que se está gestando.
Critica-se com razão o abuso que os americanos fizeram de sua hegemonia unipolar, felizmente em vias de acabar. De nada serve, porém, trocá-la pelo multipolarismo do passado, o da política das grandes potências que levou, cem anos atrás, à Primeira Guerra Mundial.
Em si mesma, a difusão do poder entre vários atores poderosos não é garantia de um mundo de paz. Ao contrário, está aí a história para mostrar que foi esse o sistema responsável pelos piores conflitos, inclusive as duas guerras mundiais.
O multilateralismo de que precisamos é o do respeito à Carta da Organização das Nações Unidas e da solução de conflitos por vias institucionais. No momento em que os dois mais poderosos membros dos Brics se envolvem cada vez mais em atritos com os vizinhos, deve o Brasil, junto com a Índia e a África do Sul, defender com firmeza os valores da paz e da lei na próxima reunião do grupo em Fortaleza, que ocorrerá nos dias 15 e 16 de julho.

sexta-feira, 6 de junho de 2014

Temores

Folha de S. Paulo, 6 de junho de 2014.

Abram Szajman
A construção da democracia

A escalada de atentados aos direitos da maioria culmina com a greve dos metroviários, que mergulha novamente no caos a maior cidade brasileira 

O preâmbulo da Constituição de 1988 nos diz que o Brasil deve ser "um Estado democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias".
Relembrar essas palavras à luz dos acontecimentos dos últimos meses e dias em nosso país causa um choque. A omissão do Estado em cumprir seu dever mais básico, qual seja o de garantir a defesa da vida, da propriedade e da dignidade do ser humano, evidencia a queda vertiginosa do império da lei para uma situação de anomia cada vez mais generalizada.
As cenas violentas difundidas massivamente pelos meios de comunicação disseminam a sensação de vivermos em terra de ninguém. Elas acabam por banalizar o crime e a violação dos direitos em níveis sem precedentes, até mesmo para situações de guerra, como no caso dos linchamentos.
No momento em que os olhos do mundo se voltam para o Brasil em razão da Copa do Mundo, categoriais profissionais e movimentos sociais --ou apenas franjas dissidentes dos desígnios da maioria-- se aproveitam não para reivindicar dentro da lei e da ordem, como seria de seu direito, mas para afrontar a coletividade com greves selvagens, interrupção de serviços essenciais, invasão e destruição de patrimônio público e privado.
Policiais em greve ou neutralizados pela covardia eleitoreira das autoridades assistiram impávidos a saques ao comércio perpetrados em Pernambuco e à paralisação dos ônibus por meios truculentos, alheios a qualquer prática sindical civilizada, como ocorreu em São Paulo. A perspectiva de punição para atos criminosos cometidos individualmente ou em grupo parece depender do foco da mídia.
Mas como a imagem de ontem é logo superada pela de hoje sem que os poderes constituídos ofereçam proteção ou reparação a quem tem os direitos esbulhados, prevalece a impunidade, que nos leva ao estágio onde não mais são respeitados ou garantidos os direitos à vida e à propriedade.
A escalada de atentados aos direitos da maioria culmina com a greve dos metroviários, que mergulha novamente no caos a maior cidade brasileira, provocando sérias dúvidas sobre a capacidade das autoridades, nos três níveis de governo, em garantir a mobilidade urbana, a uma semana do jogo inaugural na Arena Corinthians.
Os que se omitem talvez estejam inertes por acharem que a democracia é isso e não um projeto em construção, que no Brasil ainda está dando os primeiros passos. Saímos de uma ditadura e lentamente deslizamos para a barbárie que atinge a todos, independentemente de posição política ou nível de renda.
Assim, há justificados temores de que a desordem social prevaleça e o país retroceda nas conquistas sociais e econômicas obtidas nos últimos 20 anos. Apesar da inclusão de milhões de brasileiros nos mercados de trabalho e de consumo, ainda é nítido o impasse entre a massa de desenraizados que clama por direitos e a oligarquia política que, indiferente a tudo e a todos, manipula o aparelho de Estado em benefício próprio, mantendo intactos seus privilégios e seu poder.
As convulsões sociais revelam que nosso progresso recente é mais aparente do que real. Se não restaurarmos a credibilidade da política como instrumento de mudanças, continuaremos a ser uma das sociedades mais injustas e desiguais do planeta, com ilhas de excelência num mar de carências.
Como dizia Nelson Rodrigues, o subdesenvolvimento é obra de séculos. Superá-lo demonstra ser tarefa bem mais difícil do que a possível, e talvez provável, conquista do hexacampeonato mundial de futebol.
ABRAM SZAJMAN, 74, é presidente da Fecomercio SP (Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo)

quarta-feira, 4 de junho de 2014

Insuficiências

Folha de S. Paulo,  4 de junho de 2014.

Gilberto Saboia 

Insuficiências da Lei de Anistia
Fortes argumentos sustentam que a anistia não deveria estender-se a torturadores contumazes e autores de crimes de especial gravidade 

A aplicabilidade da Lei de Anistia de 1979 a acusados de tortura, desparecimentos forçados e outras violações de direitos humanos durante a ditadura militar foi objeto de decisão do Supremo Tribunal Federal em 2010. A corte julgou não caber revisão pelo Poder Judiciário.
No cinquentenário do golpe de 1964 e no contexto da revelação pela Comissão Nacional da Verdade de fatos chocantes que sensibilizaram o país, esse debate volta à tona.
Os dois ministros que então divergiram da decisão, Ayres Britto e Ricardo Lewandowski, invocaram aspectos relevantes: o primeiro sublinhou que os autores de tais crimes "desobedeceram não só a legalidade democrática de 1946 como a própria legalidade excepcional do regime militar"; o segundo afirmou que, mesmo se o Brasil estivesse em guerra, "os agentes estatais estariam obrigados a respeitar os compromissos internacionais".
Nenhum país pode invocar norma do direito interno para desrespeitar suas obrigações perante o direito internacional. Embora a tipificação do crime de tortura só tenha ocorrido em 1997, existia lei aplicável quando dos crimes. O regime militar negou sistematicamente a prática da tortura como "política", atribuindo-a quando muito a situações excepcionais que "seriam investigadas". A lei nº 6.683 de 1979 concedeu anistia aos que cometeram entre 2/9/1961 e 15/8/1979 crimes políticos ou conexos com estes, salvo aos "que foram condenados pela prática de crimes de terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal". O texto suscita a pergunta se o crime de tortura praticado por um agente do Estado pode ser considerado crime conexo a um crime político quando as autoridades afirmavam respeitar as leis que protegiam os detentos. E aponta para a preocupação do legislador de excluir dos benefícios da anistia os que praticaram atos de sangue. A sutil distinção contida na expressão "que foram condenados" mostra discriminação em favor da "justiça" em período discricionário contra a exercida com plena independência.
A Lei de Anistia foi um passo politicamente importante, mas insuficiente frente às demandas de justiça da sociedade e das vítimas, e a desejada reconciliação só será alcançada se à generosidade do perdão se contrapuser um mínimo grau de sanção pelos delitos mais gritantes.
Leis posteriores complementaram a da Anistia, como a que reconheceu a responsabilidade do Estado pelos desaparecimentos forçados e a que determinou o pagamento de indenizações.
A tortura é crime perante o direito internacional. As anistias promulgadas ao fim de períodos de exceção vêm sendo intensamente discutidas. Embora vistas por vezes como etapa necessária à reconciliação nacional, sua legitimidade tem sido contestada quando apenas servem para cobrir a impunidade, sem prever o direito à verdade e, sobretudo, quando encobrem graves crimes.
Fortes argumentos jurídicos sustentam que a anistia não deveria estender-se no caso de torturadores contumazes e autores de outros crimes de especial gravidade. O Brasil é parte da Convenção Internacional contra os Desaparecimentos Forçados desde 2010. Conforme esse instrumento, o Estado parte, se adota regime de prescrição para esse crime, obriga-se a que o prazo de prescrição só comece a contar a partir da data em que o desaparecimento for solucionado, dado o caráter continuado do crime. Assim, os autores não estão cobertos pela anistia.
O recebimento de denúncia contra os presumidos assassinos de Rubens Paiva, sentença histórica exarada pelo juiz federal Caio Taranto, enuncia com precisão e rigor argumentos jurídicos de igual sentido.
A responsabilidade internacional do Brasil por atos ilícitos sob o direito internacional deve ser considerada seriamente, pois afeta a credibilidade do país frente às obrigações que voluntariamente assumiu.
A Convenção contra a Tortura e aquela contra os Desaparecimentos Forçados adotam a jurisdição universal. A presença no território de um dos países partes de um brasileiro contra o qual pesem sérias suspeitas de ter cometido os crimes cominados serve de base para o estabelecimento de jurisdição e o possível indiciamento do acusado.
GILBERTO SABOIA é membro da Comissão de Direito Internacional da ONU. Foi secretário de Estado para Direitos Humanos (2000-2001, governo Fernando Henrique Cardoso)

terça-feira, 3 de junho de 2014

Fingimento

. Basta de fingir


Artigo de Cristovam Buarque publicado em O Globo de 31/5. Raros são capazes de ler e falar outro idioma


O Brasil comemora sua posição de sétimo maior PIB do mundo, mas o PIB per capita rebaixa o país para a 54ª posição no cenário mundial; no IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) ficamos em 85º lugar. Fingimos ser ricos, apesar da pobreza.

Nos últimos 20 anos, passamos de 1,66 milhão para 7,04 milhões de matrículas nos cursos superiores, mas quase 40% de nossos universitários sabem ler e escrever mediocremente, poucos sabem a matemática necessária para um bom curso nas áreas de ciências ou engenharia, raros são capazes de ler e falar outro idioma além do português. Fingimos ser possível dar um salto à universidade sem passar pela educação de base.

Comemoramos ter passado de 36 milhões, em 1994, para 50 milhões de matriculados na educação básica, em 2014, sem dar atenção ao fato de termos 13 milhões de adultos prisioneiros do analfabetismo; 54,5 milhões de brasileiros com mais de 25 anos não terminaram o Ensino Fundamental e 70 milhões não terminaram o Ensino Médio. Fingimos que os matriculados estão estudando, quando sabemos que passam meses sem aulas por causa de paralisações ou falta de professores.

A partir de 1995, no Distrito Federal e em Campinas, iniciamos um programa que serve de exemplo ao mundo inteiro, atualmente chamado de Bolsa Família e que transfere por mês, em média, R$ 167 por pessoa pobre, o que lhe assegura R$ 5,67 por dia, valor insuficiente para aliviar suas necessidades mais essenciais. E fingimos que, com esta transferência, estamos erradicando a pobreza que é caracterizada efetivamente pela falta de acesso aos bens e serviços essenciais que não estamos oferecendo. Fingimos ter 94,9 milhões na classe média, sabendo que a renda média mensal per capita dessas pessoas está entre R$ 291 e R$ 1.019, quantia insuficiente para uma vida cômoda, especialmente em um país que não oferece educação e saúde públicas de qualidade.

Comemoramos o aumento da frota de automóveis de, aproximadamente, 18 milhões, em 1994, para 64,8 milhões, em 2014, fingindo que isto é progresso, mesmo que signifique engarrafamentos monumentais.

Comemoramos, corretamente, termos desfeito uma ditadura, esquecendo que a democracia está sem partidos e a política se transformou em sinônimo de corrupção. Fingimos ter uma democracia com liberdade de imprensa escrita em um país onde poucos são capazes de ler um texto de jornal. Assistimos a 56 mil mortos pela violência ao ano, e fingimos ser um país pacífico, sem uma guerra civil em marcha.

Fingimos ser um país com ambição de grandeza, mas nos contentamos com tão pouco que os governantes se recusam a ouvir críticas sobre a ineficiência dos serviços públicos. Preferem um otimismo ufanista, comparando com o passado que já foi pior, e denunciam como antipatriotas aqueles que ambicionam mais e criticam as prioridades definidas e a incompetência como elas são executadas. Antipatriota é achar que o Brasil não tem como ir além, é acreditar nos fingimentos.

Cristovam Buarque é senador
http://oglobo.globo.com/opiniao/basta-de-fingir-12671144#ixzz33USpkF1V