Valor Econômico, 27
de fevereiro de 2013.
Lincoln, Lula e a
"compra de votos"
Carlos Pereira
Motivado pela última obra de Spielberg,
voltamos a refletir sobre o episódio da aprovação da 13ª emenda à Constituição
americana como um exemplo paradigmático de um líder político que foi capaz de
aproveitar uma janela de oportunidade para mudar dramaticamente a história do
seu país. Embora o Partido Republicano, do presidente Abraham Lincoln,
desfrutasse da maioria de cadeiras nas duas Casas Legislativas, não reunia
votos suficientes para aprovar no Senado a reforma que acabaria com a
escravidão. O cenário politico era de Guerra Civil e, mesmo assim, Lincoln
conseguiu unificar as mais variadas facções do Partido Republicano com o
argumento de que o fim da escravidão seria condição necessária para que a
guerra acabasse. Lincoln sabia que, com a rendição do sul, seria praticamente
impossível manter seu partido unido em favor da aprovação da emenda.
Presumindo que todos os republicanos
votariam a favor, ainda seria necessário convencer 20 senadores democratas que
não haviam sido reeleitos. Esse foi o contexto em que Lincoln enxergou uma
janela de oportunidade ao oferecer empregos públicos aos senadores democratas
em troca de apoio. No jargão da ciência política, Lincoln fez uso de
patronagem. O presidente cogitou comprar apoio com dinheiro vivo, mas tendo
sido desencorajado por assessores, decidiu então enviar intermediários de sua
confiança para negociar a adesão dos senadores em troca de empregos. Não tendo
sido plenamente bem sucedido, Lincoln foi obrigado a "sujar" as
próprias mãos, negociando diretamente o apoio de alguns senadores relutantes.
Após a aprovação da emenda, Lincoln se reúne com a comissão de confederados do
sul e negocia os termos de rendição, que levou ao fim da Guerra Civil e o fez
entrar para a história.
No caso brasileiro, o presidente Lula
percebeu, logo no início do seu primeiro mandato, que seria necessário
encontrar formas de cortar custos e aumentar receitas. A opção foi reformar os
sistemas tributário e previdenciário, agenda que criaria controvérsias inclusive
no seu próprio partido. Dada a condição de minoria, o governo Lula optou por
uma via rápida para a realização de sua agenda, "comprando" o apoio
de partidos (não apenas de dentro, mas também de fora da coalizão).
Por que episódios semelhantes levam a
resultados díspares?
Essas reformas só seriam aprovadas com
os votos dos dois principais partidos de oposição. A reforma da Previdência,
por exemplo, foi aprovada com 357 votos na Câmara dos Deputados em dois turnos.
Porém, o governo recebeu apenas 213 votos dos membros de sua coalizão, um
número muito menor do que os 308 necessários. O próprio PT enfrentou 4
defecções e 7 abstenções. O PSDB e PFL, além de compartilharem dessa agenda de
reformas, foram fartamente recompensados com a execução de mais de 75% das
emendas individuais ao Orçamento da União em 2003. Como a grande maioria de
ministérios (60%) foi monopolizada pelo PT e os recursos de emendas ao
Orçamento foram direcionados para os partidos de oposição, restou ao governo
Lula montar um esquema paralelo e ilegal de compensação para os membros de sua
própria coalizão, mantendo-os com isso unidos e disciplinados.
Os principais envolvidos no esquema,
apelidado de mensalão, foram julgados culpados e exemplarmente condenados pelo
Supremo Tribunal Federal. Além disso, o procurador-geral da República acaba de
encaminhar para a primeira instância do Ministério Público Federal de Minas
Gerais o depoimento do principal articulador financeiro do mensalão, Marcos
Valério, que acusa o ex-presidente Lula de ter recebido recursos do mesmo
esquema. Se as investigações prosseguirem e mais evidências da participação do
ex-presidente forem encontradas, Lula corre o risco de enfrentar ainda mais
custos reputacionais e/ou judiciais, além de "sair" da história pelo
seu legado de envolvimento em corrupção.
Por que episódios de compra de votos,
aparentemente semelhantes, podem apresentar resultados tão díspares para o
legado de seus governantes?
Uma possível resposta atribui as ações
desviantes a uma eventual nobreza dos fins perseguidos. Ou seja, enquanto
Lincoln foi capaz de acabar com a escravidão e colocar um ponto final na Guerra
Civil, trocando apoio político por cargos públicos, o governo Lula conseguiu
basicamente aprovar poucas reformas e governabilidade junto ao Legislativo
fazendo uso do mensalão. Tal receita é perigosa, pois relativiza os malfeitos.
Lincoln fez uso de patronagem, mas o governo Lula extrapolou, além da
patronagem também fez uso de dinheiro público em quantias vultosas.
Outra resposta estaria relacionada à
capacidade das instituições de freios e contrapesos de fiscalizarem e punirem
desvios de governantes. Lincoln recorreu a ferramentas questionáveis de governo
há 150 anos, quando o acesso à informação era restrita, a qualidade da
burocracia pública embrionária, a independência das instituições de controle
débil, enfim, em um momento histórico de construção do estado de direito muito
diferente e incipiente. Nas democracias atuais, tanto a opinião pública quanto
as instituições de controle são mais vigilantes a violações da moralidade
pública. A barganha política sem princípios gera mais custos.
Uma terceira explicação estaria
diretamente relacionada à diferença de instrumentos de governo e poderes
constitucionais e de agenda do presidente. O presidente Lula dispunha de fortes
ferramentas para implementação de sua agenda política no Legislativo (tais como
medida provisória, poder de urgência, poderes orçamentários etc). Portanto, o
uso de ferramentas não legais ou meios desviantes para a implementação de sua
agenda se torna ainda menos escusável.
O sistema presidencialista americano,
desde Lincoln até hoje, caracteriza-se por ter um Executivo com parcos poderes
unilaterais de governo. Além do mais, Lincoln teve que lidar com um Congresso
poderoso, especialmente no século XIX, e sob Guerra Civil que ameaçava o
projeto unificado de república. É surpreendente que o governo Lula não
considerasse suficientes os meios constitucionais de imposição de seu projeto
de governo e ferisse, com isso, a imagem histórica de ética que seu partido
político apregoou desde sua fundação.
Carlos Pereira é professor titular na
Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas (Ebape) e colunista
convidado do "Valor". Rosângela Bittar volta a escrever em março
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