segunda-feira, 29 de abril de 2013

Relembrando o ex-ministro da Justiça



Folha de S. Paulo,  4 de maio de 2005

A espada e o "ou"
SAULO RAMOS

Contrariando a apreciação do senador Marco Maciel sobre nossa transição para a democracia, o professor da Universidade Federal de Pernambuco Jorge Zaverucha escreveu, aqui em "Tendências e Debates" (26/4/ 05), uma das maiores bobagens que já li sobre a história recente do Brasil.
Deixando de lado suas comparações com a Espanha, afirmou o articulista que "Tancredo Neves/José Sarney foram eleitos por instituições criadas pelo regime autoritário para favorecer seus interesses". Chegou a essa conclusão o curioso detetive da história dizendo que Sarney presidiu o PDS, braço político do regime militar. Seria, portanto, um agente infiltrado nas forças que lutavam pela democracia. E vai mais longe, ao dizer: "Com a morte de Tancredo, surgiu uma disputa jurídica sobre quem o deveria suceder. A solução foi sobretudo militar. Curiosamente, Ulysses Guimarães apareceu na mídia como estadista capaz de abrir mão generosamente da disputa pelo poder presidencial".

Figueiredo, que odiava Tancredo, passou a odiar Sarney. Na Aeronáutica havia tropa disposta a anular a eleição



Atribui a Ulysses Guimarães afirmações posteriores: "Eu não fui bonzinho coisa nenhuma. Seguia as instruções de meus juristas. O meu Pontes de Miranda estava lá fardado e com a espada me cutucando que quem tinha de assumir era o Sarney". E revela: quem estava com a espada cutucando Ulysses era o general Leônidas Pires Gonçalves. Em seguida, afirma que ouviu de Antonio Carlos Magalhães que Leônidas, "um jurista militar, em meio a uma reunião, apontando a Constituição, disse que Sarney tinha que assumir". Não era mais a espada. O general estava apontando para a lei.
Em primeiro lugar, a "questão jurídica" não surgiu depois da morte de Tancredo. É o primeiro erro grosseiro quanto ao fato histórico, que prejudica as conclusões que dele o historiador queira inferir em suas análises. A questão surgiu com o internamento de Tancredo no hospital e com o conseqüente impedimento de tomar posse do cargo de presidente da República, marcada para o dia seguinte. Levantou-se a tese de que o vice não poderia assumir porque o titular não havia tomado posse e, portanto, não tinha o direito de substituir ou suceder quem no cargo não estava. A Constituição era, porém, muito clara: "Se, decorridos dez dias da data fixada para a posse, o presidente ou o vice-presidente, salvo motivo de força maior, não tiver assumido o cargo, este será declarado vago pelo Congresso Nacional" (parágrafo único do art. 76 da Constituição então vigente).
Não precisa ser jurista para verificar que aquele "ou" entre presidente e vice-presidente asseguraria a posse de um ou de outro. Se o presidente, por motivo de força maior, não podia assumir, o vice podia. E pronto. Leônidas Pires Gonçalves, um oficial honrado, escolhido por Tancredo para seu ministro do Exército, liderava um grupo de militares legalistas que queria a volta da democracia. Os integrantes desse grupo, instruídos pela sagacidade de Tancredo, convenceram os demais a devolver o poder aos civis. Democracia era outro papo.
Claro que os gorilas da ditadura tinham ambições de continuar no poder. Não foram eles que elegeram Tancredo Neves, como afirma o articulista pernambucano. O sistema militar, pouco tempo antes, tivera uma estrondosa vitória no Congresso Nacional, com a rejeição da emenda de eleições diretas para presidente. O Congresso era o Colégio Eleitoral. Pelo costume de impor tudo aos nossos parlamentares, os militares concordaram em realizar eleições no Colégio Eleitoral e lançaram como candidato Paulo Maluf, cria do general Costa e Silva e um civil de confiança do regime autoritário, que combatia a subversão e a corrupção. Estavam certos de que venceriam, pois vinham de uma vitória na votação contrária às eleições diretas. O presidente da República era o general João Batista Figueiredo, que defendia a legalidade, isto é, as eleições indiretas. Na privacidade, costumava dizer "Tancredo "never'". Mas Tancredo foi eleito por 480 votos, contra 180 dados a Paulo Maluf.
Figueiredo, que odiava Tancredo, passou a odiar Sarney, que ajudou a derrotá-lo. Com o impedimento do presidente eleito, essa ala totalitária quis aproveitar o pretexto para virar a mesa. Na Aeronáutica havia tropa disposta a anular a eleição. Walter Pires, então ministro do Exército, quando soube que Sarney tomaria posse, declarou expressamente que iria mobilizar seus dispositivos para impedir. Leitão de Abreu o fez desistir, dizendo que a tropa já estava sob o comando de Leônidas.
Sarney assumiu o governo e permitiu todas as liberdades, a volta dos partidos de esquerda, na ilegalidade desde Juscelino, e convocou a Constituinte. Não se pode afirmar, pois, que tudo isso foi obra dos militares.
O professor Zaverucha atropela mais uma vez a história ao afirmar que "Tancredo quis um mandato cheio, de quatro anos. Achando pouco, Sarney pressionou o Congresso, com ajuda dos militares, pelo quinto ano de governo". Tancredo tinha o mandato de seis anos e nunca falou em quatro. Sarney, que o sucedeu, também tinha os mesmos seis anos. Pela lógica do professor, os militares pressionaram o Congresso para reduzir para cinco. Não são mais as rádios e televisões. Agora foram os militares.
Vejam o que professores universitários fazem com a história do Brasil. E com história recente, que nós, os mais velhos, conhecemos por a ter vivido por dentro. Logo, logo vão afirmar que Pedro Álvares Cabral descobriu a Argentina e que o padre Anchieta fundou Buenos Aires. O professor Zaverucha é doutor pela Universidade de Chicago. Podia escrever a história de Al Capone. E deixar a nossa em paz.

José Saulo Pereira Ramos, 75, é advogado. Foi consultor-geral da República e ministro da Justiça (governo Sarney).


Folha de S. Paulo, 25 de maio de 2013.


Conveniência política
JORGE ZAVERUCHA

Publiquei na Folha, em 26/4, artigo discordando do eminente senador Marco Maciel. Ao contrário dele, acredito que a transição espanhola para a democracia foi mais bem sucedida que a brasileira. Boa parte do nosso aparato coercitivo do Estado se mantém autoritário, mesmo com incontestáveis avanços na competição eleitoral. A essa singular situação, que já perdura 20 anos, chamo, dentre outros motivos, de semidemocracia.
O ex-ministro da Justiça Saulo Ramos discordou da minha avaliação. Não precisava resvalar para ataques pessoais contra o "articulista pernambucano". Até fez surpreendente uso da expressão "gorilas da ditadura". Linguajar outrora utilizado por certos segmentos da esquerda. Também investiu contra os professores universitários, acusando-os de deturparem a história do Brasil. A responsabilidade é exclusivamente minha se escrevo "bobagens". Não deveria tomar a parte pelo todo.
Nenhuma palavra do advogado sobre a saída do ministro Viegas. Ou reflexão sobre o caso espanhol. Talvez minha visão, pouco idílica, sobre seu ex-chefe o tenha irritado. É oportuno ressaltar que, numa democracia, conta não só o conteúdo mas também a forma pela qual os argumentos são colocados.
Alguns esclarecimentos. A afirmação de Ulysses: "Segui as instruções do meu jurista. O meu "Pontes de Miranda" [general Leônidas] estava lá, fardado, e com a espada me cutucando que quem tinha de assumir era o Sarney" está no artigo de Ronaldo Costa Couto ("Para o povo, esperança era o outro nome de Tancredo"), publicado na Folha (15/3). Se isto não se chama intimidação...
Ulysses teria insultado os membros de Junta Militar; concorreu, em 1974, como "anticandidato" à Presidência da República; e chamou o ex-presidente Geisel de "Idi Amim branco". Geisel foi o grande conselheiro militar de Tancredo. Portanto, Ulysses era nome inaceitável pela caserna. Não seria então, com a morte de Tancredo, que chegaria ao poder.

O problema de quem "vive por dentro a história" é a capacidade de enxergar a árvore, mas não a floresta


Jamais afirmei ter ouvido algo de Antonio Carlos Magalhães. Reproduzi sua declaração sobre Leônidas, a quem definiu como "o jovem jurista militar". Vide "A Tribuna da Imprensa" ("Senado lembra 20 anos da democratização", 16/3). Curioso é que, nessa sessão do Senado, os principais oradores foram políticos aliados do governo militar até o último suspiro do regime. Aos ex-"peemedebistas históricos" foi reservado o papel de coadjuvantes. E não se ouviu maiores protestos por parte da base parlamentar do atual governo.
Sugiro leitura do livro de Ricardo Noblat, "Céu dos Favoritos", em especial o capítulo "A ameaça dos Urutus". Lá há detalhes sobre a pressão militar em favor da manutenção do presidencialismo e pelos cinco anos de mandato. Esta não é a única variável explicativa para a vitória de Sarney. Poderia ter ocorrido uma negociação entre os políticos, caso parte deles não desse como certa a vitória do Parlamentarismo. Por exemplo: continuação do presidencialismo em troca da redução do mandato para quatro anos.
E por falar em mandato, a Constituição então vigente estipulava seis anos para o presidente. É de conhecimento público que Tancredo anunciou seu desejo de governar por quatro anos. Destoando do manifesto que deu origem à Aliança Democrática (7/8/84). Pelo manifesto, seria restabelecida imediatamente eleição direta para presidente da República.
Ressalte-se a diferença de comportamento entre Sarney e Suárez, ambos egressos das hostes autoritárias do "ancién" regime. Suárez, logo após ter sido eleito pelas cortes franquistas, começou a organizar eleições diretas. Já Sarney, achando pouco quatro, trabalhou, e como, pelo quinto ano de mandato.
Sobre quem deveria suceder Tancredo, o advogado apresenta uma das possíveis interpretações jurídicas. Só que ele não detém o monopólio do escólio constitucional. O próprio Sarney, em seu livro de memórias, escreveu que "o ministro Moreira Alves, presidente do Supremo Tribunal Federal, convocou uma reunião de urgência, secreta, de toda a corte para examinar o assunto. Resolveram, contra os votos dos ministros Luís Galloti e Sidney Sanches que, na forma da Constituição, cabia ao vice-presidente assumir o governo" (http://noblat.blig.ig.com.br).
Havendo divergência jurídica sobre quem deveria suceder Tancredo, cai por terra o argumento de a única solução ser a assunção de Sarney. Não é preciso ser um "curioso detetive da história" nem "ter vivido por dentro a história" para chegar a esta conclusão. O problema, muitas vezes, de quem "vive por dentro a história" é a capacidade de enxergar a árvore, mas não a floresta.
Sarney corroborou a influência do general Leônidas em artigo publicado nesta Folha (21/1) com o sugestivo título de "Boa noite, presidente". Referiu-se ao cumprimento que lhe foi dado pelo general Leônidas, às 3h, no dia de sua posse. Só assim foi dormir convicto de que assumiria o poder. "Leônidas foi o ponto chave (ênfase minha). A ele deve o país, em grande parte, a tranqüilidade da transição", escreveu o presidente. É o que eu tinha a comentar.

Jorge Zaverucha, 49 anos, doutor em ciência política pela Universidade de Chicago, é professor da Universidade Federal de Pernambuco e pesquisador do CNPq. É autor de "FHC, Forças Armadas e Polícia: Entre o Autoritarismo e a Democracia, 1999-2002", entre outras obras.

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