segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

"Contrabandos"

Por que parou?
27 Fev 2012

Está parado na câmara dos Deputados o projeto de lei que impede os parlamentares de inserir “contrabandos”, muitos de interesse pessoal, nas medidas provisórias enviadas pelo governo

Gustavo Ribeiro


Em 2010, o governo federal editou uma medida provisória (MP) que alterava regras de financiamento habitacional. Encaminhada ao Congresso para análise, o texto foi deformado. Parlamentes aprovaram emendas que nada tinham a ver com a proposta original. Enxertaram “contrabandos” ou “jabutis”, jargões parlamentares para um hábito danoso, cujos maiores beneficiários são os lobbies privados. Ao sair do Congresso, a MP sobre financiamento habitacional passou a tratar da emissão de títulos da dívida pública brasileira ao Banco do Nordeste e da doação, pela Casa dão Moeda, de 100 milhões de cédulas ao Haiti. Essa aberração legislativa resulta da nefasta combinação entre o domínio que o Executivo exerce sobre a pauta do Legislativo - apesar de os dois poderes serem, em teoria, autônomos e independentes - e a falta de disposição dos congressistas para honrar duas de suas principais tarefas: ser protagonista do ato de legislar e servir de contrapeso a manifestações imperiais do governo de turno.
Criadas pela Constituição de 1988, as medidas provisórias são um instrumento concedido ao presidente da República para baixar leis excepcionalmente, em casos emergenciais, como em resposta a tragédias naturais ou graves crises financeiras. Só deveriam ser editadas em casos de "urgência" e "relevância". Ao contrário dos projetos de lei, as MPs entram em vigor tão logo publicadas no Diário Oficial. É justamente nesse ponto que os interesses dos presidentes da República e de parlamentares mais preocupados em atender a determinados lobbies se encontram. Os presidentes perceberam que demandava menos tempo e custo político implantar mudanças legais via MP. Por isso, abusaram do uso do instrumento. Já os parlamentares, que não conseguem por projetos de sua autoria na pauta, completamente dominada pelo Executivo, passaram a conviver gostosamente com as MPs, apesar de vindas do Palácio do Planalto. Por que aceitaram essa submissão? Porque as MPs têm prioridade na fila de votação. Deputados e senadores sabem que elas terão de ser votadas. Por isso, promovem um festival de emendas - os "contrabandos".
O quadro é de hipocrisia institucional. No Congresso, enquanto um pequeno grupo reclama da enxurrada de MPs do Executivo, que estaria usurpando a prerrogativa de legislar, a maioria dos parlamentares quer mesmo é cada vez mais a edição desses textos. A situação é tão constrangedora que líderes governistas, em diversas ocasiões, chegaram a pedir ao presidente que baixasse medidas provisórias para resolver determinados assuntos - e, claro, abrir brecha para o acolhimento de certas demandas privadas. "Existem políticos especializados em introduzir itens sem nenhum interesse público. É assim que são feitas as grandes negociatas", diz o senador Demóstenes Torres (DEM-GO). Entre os ardis para favorecer setores está a apresentação do relatório às vésperas da votação da MP. Isso impossibilita aos parlamentares analisar com cuidado o conteúdo de todos os artigos e emendas apresentados antes de votá-los. A votação-relâmpago não é nova, mas se intensificou na gestão do presidente da Câmara, o petista Marco Maia, um incentivador e beneficiário dos "contrabandos".
Como cabe ao presidente da Casa a escolha dos relatores das MPs, Maia confia a tarefa a deputados que não oferecem resistência à inclusão no texto das mais estapafúrdias emendas (veja quadro). O próprio Maia defendeu recentemente, embutido em uma MP sobre incentivos fiscais para a indústria de automóveis, um "contrabando" que beneficiava a indústria tabagista. Na última década, diferentes presidentes do Congresso reclamaram do excesso de MPs. Nada foi feito. Com a aprovação de uma proposta de emenda constitucional, relatada pelo senador Aécio Neves, vem agora do Senado o primeiro passo para racionalizar o processo. A emenda proíbe a inclusão de assuntos sem relação com o objeto original da MP. A Câmara, entretanto, não parece interessada em aprovar a mudança. Depois de deixar o projeto hibernando na Comissão de Constituição e Justiça, Marco Maia passou a relatoria ao companheiro Ricardo Berzoini (PT-SP), que vem tratando a matéria com proposital descaso. "Muitos parlamentares nem apresentam projetos e se limitam a pegar carona nas medidas provisórias para atender aos próprios interesses", afirma Aécio. Como esses interesses menores servem de combustível para animar boa parte do Parlamento, a iniciativa de Aécio só terá futuro se a sociedade brasileira pressionar os deputados.

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