segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Papel indefinido


Folha de São Paulo, 20 de novembro de 2011

Janio de Freitas
Papel indefinido

Não serve ao país a atual dubiedade sobre o papel das Forças Armadas em operações em favelas
O planejamento das invasões de Rocinha, Vidigal e Chácara do Céu agravou uma situação esdrúxula. E, por consequência, a necessidade de ser enfrentada a falta de uma doutrina sobre a função interna das Forças Armadas no país.
A um só tempo, o Exército recusou-se a participar das operações, como força de apoio, e evidenciou o desejo de retirar-se do Complexo do Alemão, onde estava prevista sua colaboração até junho, como garantidor parcial da ocupação.
O argumento de que militares não são preparados para esse gênero de ação tem prevalecido, sendo dada como ato de boa vontade especial -e não de cumprimento de responsabilidades definidas- a relutante presença do Exército na tomada do Complexo do Alemão. Não faltam contra-argumentos.
Se não há um setor do Exército preparado para tal tipo de ação é porque não foi tomada a providência de organizá-lo. Mas já era tempo, muito tempo, de que isso estivesse feito, por ao menos três fortes motivos. Primeiro, o Exército foi a força cujo comando pressionou com energia, em 1988, para constar da Constituição a responsabilidade das Forças Armadas também pela ordem interna. Segundo, o Exército capaz tem preparo para todos os tipos de operações de terra. Terceiro, "ações de polícia" semelhantes às das favelas já foram feitas pelo Exército, sob a atual Constituição, numerosas vezes: contra contingentes de sem-terra, contra grevistas, contra manifestantes, contra posseiros.
A contradição vai mais longe. Se o Exército pode fazer (bem) no Haiti -e se orgulha disso- a mesma atividade requerida pela ocupação de favelas, por que não pela segurança de brasileiros em seu próprio país?
Há muitas restrições possíveis à participação das Forças Armadas em quaisquer problemas internos. Sua finalidade é, por definição, a defesa do país contra a violação da soberania física.
O que não serve ao Estado de Direito é a atual dubiedade, imposta aos acovardamentos remanescentes nos constituintes e depois utilizada, em uma ou em outra direção, sem critérios nítidos -como deve tê-los o regime democrático.
Inclusive por artigos na Folha, Fernando Henrique Cardoso foi, entre os políticos, o que mais se referiu, no governo Sarney (o primeiro civil), à necessidade de definição do papel das Forças Armadas. Nos seus oito anos de presidente, não tocou no assunto. Nem depois. Mas a necessidade continua, agrava-se em alguns aspectos e dela dependem muitas possíveis ocorrências e decisões futuras. Sem essa definição é difícil, por exemplo, que o Rio consiga manter por longo prazo o efeito pretendido das ocupações de favelas. O mesmo com outras cidades e Estados, na eventualidade de agravamento de suas más condições de segurança pública e sociais, menos ou mais escondidas hoje.

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