quinta-feira, 28 de julho de 2011

Censura

O Globo, 28 de julho de 2011.

Justiça agride Constituição com censura


Editorial


A deplorável tradição brasileira da lei que "não pega" contamina de forma perigosa dispositivos constitucionais. E nesta contaminação uma vítima frequente é o direito à liberdade de expressão, em todos os aspectos: de opinião, imprensa, criação. O mais grave é que o desrespeito à Carta tem partido da própria Justiça, a maioria das vezes em instâncias inferiores.
A censura ao filme sérvio "Terror sem limites" é apenas mais um atropelamento da Constituição patrocinado por um tribunal, neste caso acionado pelo ex-prefeito Cesar Maia e o filho Rodrigo, em nome do DEM, com base no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
Existe uma extensa relação de atos de censura à imprensa avalizados por juízes, um deles ainda em curso contra o jornal "O Estado de S. Paulo", proibido há quase dois anos de publicar qualquer notícia sobre uma investigação da Polícia Federal em que está envolvido o empresário Fernando Sarney, filho do presidente do Senado, José Sarney (PMDB-PA). Já o tacão sobre o filme sérvio recoloca o Brasil na obscuridade do regime militar, quando filmes, músicas e peças teatrais eram alvo constante do departamento de censura da Polícia Federal.
Há quem possa concordar com a argumentação da defesa da moral, bons costumes e da criança - haveria cenas fortes com menores de idade - para o filme não poder ser exibido. São sempre ponderações razoáveis, mas não se deve abrir frestas e exceções num dispositivo constitucional em que se lastreiam as próprias liberdades democráticas.
A Caixa Econômica, patrocinadora do festival RioFan, em que o filme seria exibido na categoria de terror, decidiu cancelar a projeção, diante da reação negativa. Na Inglaterra, "A Serbian film - Terror sem limites" sofreu 49 cortes; na Espanha o diretor do festival em que ele foi projetado sofre um processo; e, na Noruega, está proibido. Mas a sociedade brasileira, ao superar a ditadura militar, optou por garantir as mais amplas liberdades públicas, direito inscrito na Constituição de 1988. Por erro dos constituintes, foi preservada a Lei de Imprensa, de 1967, do marechal-presidente Castello Branco, até a falha ser corrigida em 2009 pelo Supremo Tribunal Federal, com a supressão do dispositivo. Por uma simples razão: o direito à liberdade de expressão prescinde de regulamentação. Quer dizer, não cabe lei para estabelecer limites a qualquer segmento da sociedade neste aspecto. Por isso, a própria classificação de filmes e programação de entretenimento em geral é apenas indicativa no Brasil. E não pode ser diferente, mesmo em assuntos sensíveis como o do "Terror sem limites", acusado de promover a pedofilia.
A Caixa Econômica agiu dentro do seu direito. Nada a criticar. É até mesmo possível que o filme não se enquadre sequer no escopo de um festival de cinema "fantástico". Pode ser que o melhor destino para ele seja a lata de lixo. Mas nenhuma obra pode ser vetada por qualquer agente do Estado. E, pior, agentes que passaram a tesoura sequer sem assistir ao filme, segundo se noticia.
Tudo inútil, pois "Terror", com a polêmica, entrou na lista de sucesso entre os arquivos baixados pela internet.

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