Folha de S. Paulo, 15 de dezembro de 2014.
Entrevista José Miguel Vivanco
Brasil precisa julgar crimes dos dois lados na ditadura militar
Diretor da ONG Human Rights Watch afirma que Comissão errou ao omitir
ações da esquerda e que falta coragem para superar a Lei da Anistia
FERNANDA GODOY
DO RIO
O diagnóstico é contundente: o chileno José Miguel Vivanco, 53,
diretor-executivo da divisão Américas da ONG Human Rights Watch, diz que
o Brasil está atrasado e precisa de coragem para julgar os acusados, de
ambos os lados, de crimes durante a ditadura militar (1964-1985).
O atraso "demonstra a debilidade da causa dos direitos humanos no país", diz.
Para o ativista, o relatório da CNV (Comissão Nacional da Verdade)
divulgado na quarta (10) é um avanço, mas o país deve ainda investigar,
julgar e punir os responsáveis por crimes cometidos tanto por agentes do
Estado como por guerrilheiros.
Ele critica a Comissão por ter excluído os crimes da esquerda do
relatório. "Se houve abusos de grupos armados irregulares, isso deve
constar de um informe dessa natureza", afirma Vivanco, que foi expulso
da Venezuela em 2008 após publicar relatório crítico ao governo Chávez.
Para ele, a Lei da Anistia --aprovada em 1979, reafirmada pelo Congresso
após a redemocratização e confirmada pelo STF em 2010-- não pode
obstruir julgamentos.
Vivanco se baseia na decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos
que, em 2010, sentenciou o Brasil a investigar crimes da ditadura e
punir seus autores para afirmar que o direito evoluiu e a impunidade é
inaceitável.
Como o sr. avalia a recomendação da Comissão Nacional da Verdade para
que autores de crimes imprescritíveis, como tortura, sejam julgados?
José Miguel Vivanco - O relatório faz o que outras comissões da
verdade fizeram no passado: um esforço extrajudicial. Como encontraram
evidências de crimes atrozes, desaparecimentos, torturas, execuções,
hoje considerados crimes contra a humanidade, esses delitos devem ser
investigados e punidos. Devem ser identificados seus autores materiais,
os que instigaram esses crimes ou que encobriram as violações dos
direitos humanos na época.
A Lei da Anistia, que vem de outra época, não pode constituir um
obstáculo, à luz dos parâmetros nacionais e internacionais de direitos
humanos, para a investigação e a punição dos responsáveis por essas
atrocidades.
A comissão não é instância judicial, investigou por seus próprios meios e
sem a ajuda do Exército --coisa que infelizmente também ocorreu no
Chile, na Argentina, no Peru--, e conseguiu, assim mesmo, provas dos
delitos.
Esses delitos, insisto, devem ser objeto de processo justo, equilibrado,
com respeito ao processo legal. Não pode haver impunidade total.
O Brasil demorou a criar sua Comissão da Verdade. O documento chega tarde?
O Brasil está muito atrasado em relação aos demais países da região.
Recuperou a democracia há quase 30 anos e ainda não tinha feito esse
esforço, que normalmente se faz tão logo se recupera a democracia. Isso
demonstra a debilidade da causa dos direitos humanos no país.
E, inclusive, mostra a força do Exército brasileiro, que conseguiu
passar incólume por quase 30 anos. As Forças Armadas se deram ao luxo de
não prestar nenhuma cooperação à comissão, apesar de ela ser uma
entidade oficial.
Espero que o documento abra debate amplo e justo sobre as
responsabilidades que possam caber ao Exército e as que possam ter tido
grupos irregulares armados, algo que o relatório lamentavelmente não
menciona, ao contrário do ocorrido no Chile e Peru.
É uma das queixas dos militares a ausência de referências aos crimes do outro lado.
Foi um erro. Não pode haver dois pesos e duas medidas. Se houve abusos
cometidos por grupos armados irregulares, isso deve constar de um
informe dessa natureza. E também haveria servido para mostrar a
magnitude dos abusos cometidos pelo Estado e a magnitude dos abusos dos
grupos armados.
O relatório é um primeiro passo para mudanças?
Neste ponto, sou prudente. Depende de como a sociedade receberá o
relatório, de seu impacto, de se isso se traduzirá em demanda por
investigações judiciais. Depende de saber se setores importantes da
sociedade se farão ouvir, deixando claro que não aceitam a impunidade.
Qual o papel de Dilma?
É central. E também o de líderes da oposição. É difícil entender a falta
de compromisso dos líderes brasileiros contra a Lei da Anistia. Parece
que a consideram uma boa lei porque afetou também a setores da esquerda
que foram perseguidos nesses anos.
Não devemos temer a Justiça. É preciso botar tudo sob os holofotes da
Justiça. Houve pessoas que se beneficiaram da anistia embora tenham
cometido abusos graves, que foram membros de grupos armados. É preciso
prestar contas de suas responsabilidades, assim como os agentes do
Estado têm que fazê-lo.
Falta clareza sobre a primazia da Justiça sobre quaisquer outras
considerações, em especial as de natureza ideológica. O tema dos
direitos humanos não é de esquerda ou direita, nem monopólio de uma ou
outra. É um valor jurídico que tem a ver com a necessidade de que uns e
outros, civis e militares, ricos e pobres, tenham tratamento igualitário
perante a lei.
Todos devem prestar contas por violações de direitos humanos cometidas,
ainda que há 40 anos. Do contrário, custa muito construir a
credibilidade do Estado de Direito.
Os que se opõem à revisão da Lei da Anistia argumentam que ela foi
fruto de um acordo político. À luz do direito internacional, como
analisa isso?
Não há sentido nesse argumento. Esse foi o acordo político que os
líderes da época acharam possível. Mas o país evoluiu, assim como o
direito brasileiro e o internacional. E o país adquiriu obrigações
jurídicas internacionais em termos de direitos humanos. Isso não pode
ficar congelado.
O que uma lei de anistia faz é oferecer proteção aos que cometeram
crimes graves. É possível que essa proteção resulte de negociação
política, mas isso não tem nada a ver com os princípios jurídicos.
Os líderes políticos da época não tinham em consideração os interesses
das vítimas. São as vítimas desses crimes atrozes e o conjunto da
sociedade quem têm que, hoje, em função dos padrões atuais de direitos
humanos, decidir o futuro do Brasil nesses temas.
Se o Brasil mantiver a anistia, estará indo contra o entendimento jurídico moderno?
Seria lamentável que, apesar das evidências, o Brasil decidisse varrer
esses temas para debaixo do tapete. Não se deve pretender que esse seja o
fecho, o último capítulo.
O caminho de mudança passa pelo Judiciário?
Os juízes podem até chegar à conclusão de que a Lei da Anistia não
impede a investigação, como foi o caso da Suprema Corte chilena. A lei
de anistia de 1978, ditada por Pinochet, continua vigente. Não foi
obstáculo para que se investigasse e castigasse violações aos direitos
humanos.
Parece que políticos brasileiros não têm valentia para realizar
investigações justas. Não revanches, investigações judiciais. Ninguém
está à margem da lei. Por que estaria? Por vestir um uniforme?
O Brasil mudou e, com respeito aos princípios do processo legal, deve
haver investigação séria. A Lei da Anistia não pode ser um obstáculo, em
especial depois que a Corte Interamericana de Direitos Humanos emitiu
um parecer categórico sobre ela.