quinta-feira, 24 de julho de 2014

JM: Resquício autoritário

Justiça Militar e direitos humanos
24 Jul 2014
 

Flávia Piovesan e Juliana Cesário Alvim


A Justiça de transição tem como maior desafio ritualizar a passagem de um regime autoritário a um regime democrático, enfrentando o legado de graves violações de direitos. É capaz de aliar a ótica retrospectiva do passado à lente prospectiva do presente e do futuro, clamando pelo direito à verdade, pelo direito à Justiça, pelo direito à reparação e por reformas institucionais. Como uma das dimensões mais importantes da Justiça de transição, as reformas institucionais objetivam, sobretudo, evitar que novas violações a direitos continuem ocorrendo, pela persistência injustificada de resíduos de autoritarismo no Estado de Direito. O julgamento de civis pela Justiça Militar remanesce com um destes resíduos que o Brasil ainda tem de superar. A Constituição de 1988, que coroou o processo de transição democrática do país, não definiu a competência da Justiça Militar, delegando o assunto à legislação ordinária. O Código Penal Militar, editado em 1969 — no auge dos anos de chumbo —, previu o julgamento de civis por cortes militares, desde que praticassem crimes definidos como militares. Esta competência tem sido aceita pela jurisprudência brasileira, inclusive do STF.
Todavia, a configuração da Justiça Militar compromete gravemente a sua independência e imparcialidade para processar e julgar civis. Com efeito, os julgamentos pela primeira instância da Justiça Militar são realizados por cinco pessoas: um juiz auditor, civil e concursado, e quatro oficiais militares, os quais exercem a função jurisdicional por apenas três meses, retornando após à caserna. A segunda e última instância é exercida pela Superior Tribunal Militar (STM), que é integrado por cinco ministros civis e dez oficiais-generais militares. Os magistrados militares continuam na ativa, permanecendo vinculados aos princípios de hierarquia e disciplina que regem as Forças Armadas. Deles não se exige qualquer formação jurídica. Esta composição não assegura a independência e a imparcialidade dos magistrados — garantia essencial do Estado de Direito. Ademais, é natural que juízes militares, que foram profissionalmente socializados para pensar sob a ótica da hierarquia e disciplina, sempre priorizando as Forças Armadas, não sejam tão sensíveis aos direitos dos acusados civis, aos quais são imputadas ofensas a interesses castrenses. Hoje tem se intensificado a atuação das Forças Armadas na vida social. Os militares têm sido convocados cada vez mais para tarefas atípicas, como a ocupação de comunidades carentes conflagradas — como o Complexo do Alemão e a Favela da Maré, no Rio de Janeiro —, a garantia da segurança pública em grandes eventos, como a Copa do Mundo, e o controle de manifestações populares. Neste cenário, a submissão de civis à Justiça Militar tende a proliferar, com o aumento significativo de casos envolvendo, por exemplo, supostos desacatos ou desobediências a militares. Os riscos de arbitrariedade, praticada sob o manto da prestação jurisdicional, crescem na mesma proporção.
Praticamente nenhuma nação democrática permite, na atualidade, o julgamento de civis por tribunais militares em tempos de paz. A Corte Interamericana de Direitos Humanos, a cuja jurisdição o Brasil se submete, é enfática ao sustentar que no Estado Democrático de Direito a jurisdição militar deve ter um alcance restritivo diretamente condicionado à proteção de interesses jurídicos característicos das forças militares. Para a Corte, apenas agentes militares da ativa podem ser julgados por Cortes militares, somente em crimes militares, sob pena de afronta ao direito ao devido processo legal e ao direito a um julgamento justo realizado por uma justiça imparcial e independente. Também esta é a orientação da ONU e da Corte Europeia de Direitos Humanos. O STF tem uma excelente oportunidade para corrigir esta patologia. Tramita na Corte a arguição de descumprimento de preceito fundamental nº 289, proposta pela Procuradoria Geral da República, em que se busca o reconhecimento da incompatibilidade com a Carta de 1988 das normas que atribuem à Justiça Militar a competência para julgamento de civis. Esperamos que o STF cumpra o seu papel de guardião dos direitos e da democracia, revendo a sua atual jurisprudência, para expurgar da ordem jurídica brasileira um dos mais claros "entulhos autoritários" do regime militar. Flávia Piovesan é professora de Direito da PUC/SP e procuradora do Estado de São Paulo e Juliana Cesário Alvim é professora de Direito da Uerj e da UFRJ

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