domingo, 22 de setembro de 2013

Subdesenvolvimento abjeto

Folha de S. Paulo, 22 de setembro de 2013.

Política insalubre

Embora seja um dos mais graves problemas do país, saneamento básico não aparece na pauta dos protestos ou dos políticos
Assim como tubulações de água e esgoto ficam ocultas debaixo da terra, o tema do saneamento básico também segue quase invisível na política nacional. As manifestações de junho, ao alijarem-no da pauta de demandas por saúde, educação e segurança, apenas perpetuaram essa miopia tradicional.
E, no entanto, é no campo sanitário que as deficiências do Estado brasileiro se manifestam da forma mais contundente.
Há algo profundamente errado com um governo --com um país-- que se contenta em deixar 37% dos domicílios de fora da rede coletora de esgoto, aí consideradas as fossas sépticas ligadas ao sistema. Ainda mais vergonhoso, há no Brasil cerca de 8 milhões de pessoas sem acesso a um mero banheiro.
Verdade que eram 17% em 1995, mas não chega a ser motivo de orgulho cumprir só no século 21 um requisito tão básico de civilização.
No que respeita à água encanada, os 519 mil km da rede distribuidora chegam a 82,4% dos brasileiros --ainda longe da virtual universalização atingida na eletricidade (que alcança quase 99%) e no ensino fundamental (97% das crianças de 7 a 14 anos estão na escola).
Sem água potável de confiança e sem destinação segura de dejetos, a população fica sujeita a doenças da pobreza, como diarreia. Não é por acaso que saneamento básico é inerente à ideia de moradia digna.
Houve avanços, por certo. Em 2011, 1,3 milhão de casas foram conectadas à rede coletora de esgotos, um crescimento de 5,6%. Na de água houve 1,4 milhão de novas ligações (mais 3,1%). Mas já se calculou que, no ritmo histórico, a universalização conjunta desses serviços demoraria um século.
As metas do Plano Nacional de Saneamento Básico (Plansab) são de consecução duvidosa. Prevê-se que, em 2033, 93% dos domicílios de áreas urbanas terão esgotos coletados e tratados. A distribuição universal de água tratada, nas cidades, viria dez anos antes --na zona rural se consideram aceitáveis poços artesianos e fossas sépticas.
Para chegar a isso, todavia, seria preciso investir um total de R$ 508 bilhões nos próximos 20 anos (R$ 298 bilhões de recursos federais e R$ 210 bilhões de outras fontes --privadas, municipais, estaduais). São mais de R$ 25 bilhões por ano. Em 2011, porém, o investimento no setor se limitou a R$ 8,4 bilhões.
No orçamento do Programa de Aceleração do Crescimento para 2014, o saneamento terá de partilhar com os itens drenagem, pavimentação e mobilidade urbana os R$ 7,3 bilhões previstos para a rubrica Cidade Melhor. No monitoramento de obras do PAC, só 625 dos 7.098 empreendimentos sanitários aparecem como concluídos.
O realismo impõe reconhecer que o meio trilhão de reais não se materializará em duas décadas. Constatação deplorável, porque poucas coisas farão mais sentido para o verdadeiro desenvolvimento do país que dotar toda a população de serviços sanitários eficientes.
Internações e mortes por problemas gastrointestinais são mais raras hoje, mas ainda significativas: 462 mil e 2.100 por ano, respectivamente. Estima-se que 25% das internações e 65% das mortes possam ser eliminadas com a universalização de fontes seguras de água.
A Organização Mundial da Saúde afirma que R$ 4 são economizados em serviços de saúde para cada R$ 1 investido em saneamento básico. Além disso, há correlações que não deveriam ser ignoradas: o aproveitamento escolar de crianças onde há saneamento adequado aumenta 30%, e a produtividade do trabalhador, 13%.
É preciso, pois, buscar fontes alternativas de financiamento. A iniciativa privada seria uma opção óbvia, não fosse o caos regulatório que caracteriza o setor, a começar pela superposição de deveres entre as esferas governamentais.
Talvez o mais sensato, de início, seja atacar as ineficiências evidentes no sistema sanitário. Duas saltam à vista: perdas de água tratada e tributação irracional dos serviços.
A cada cem litros de água tratada lançados na rede de distribuição, quase 40 deixam de gerar receita para a operadora do serviço, seja por vazamentos, seja por ligações clandestinas. Se o desperdício caísse pela metade, calcula-se que R$ 37 bilhões seriam carreados para as concessionárias até 2030.
O setor de saneamento, por outro lado, passou a recolher mais tributos a partir de 2002, por força de mudanças na incidência do PIS e da Cofins. As empresas pagam cerca de R$ 2 bilhões anuais, que poderiam ser destinados a investimentos se fossem desoneradas.
Haverá eleições daqui a um ano. Os candidatos a presidente e a governador que não apresentarem propostas concretas para corrigir essas distorções gritantes darão mais uma demonstração de que o problema do saneamento, se depender deles, continuará enterrado. Cabe a seus eleitores impedir que essa forma abjeta de subdesenvolvimento prevaleça.

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