O Estado de S. Paulo, 20 de abril de 2012.
A Human Rights Watch, uma das
principais organizações de defesa dos direitos humanos do mundo, está
prestes a instalar seu escritório no Brasil. Será a 16.ª base física da
ONG, que tem mais de 100 pesquisadores trabalhando em 90 países. Os
trabalhos no Brasil serão orientados por José Miguel Vivanco,
responsável pela Divisão das Américas.
Vivanco ficou mundialmente conhecido em 2008 pelo episódio de sua
expulsão da Venezuela – logo após a divulgação de um relatório sobre as
violações de direitos humanos no governo do presidente Hugo Chávez. A
polêmica faz parte do dia a dia desse advogado de origem chilena, que
já atuou como assessor da Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Na entrevista abaixo, ele contesta recente declaração da
presidente Dilma Rousseff, que considera perigoso dar palpites em
questões de direitos humanos em outros países. Também afirma que o
Brasil deverá, obrigatoriamente, cumprir a decisão da OEA quanto aos
mortos e desaparecidos na ditadura militar e defende os procuradores que
acusam agentes de Estado de crimes continuados. Nenhum período da
história e nenhuma instituição, civil ou militar, pode ficar à margem de
investigações, segundo o especialista.
O que explica o interesse de sua organização pelo Brasil?
A rationale por trás da nossa vinda apoia-se em dois teoremas
principais. Primeiro, o nosso trabalho terá uma vertente interna,
começando com o quesito segurança pública. Trata-se de demonstrar que
segurança pública não é incompatível com o respeito aos direitos
humanos. Na realidade brasileira, nem sempre tem sido possível dar
efetiva segurança ao público sem atropelar os direitos humanos. Segundo,
pretendemos colaborar no debate em torno da centralidade dos direitos
humanos na diplomacia brasileira. O Brasil – e também Índia e África do
Sul, outros países em que estamos instalados – é uma democracia, com
imprensa livre e judiciário independente, que ganha crescente peso no
cenário internacional. Nós gostaríamos que o Brasil exercesse um papel
de liderança mais efetivo ao nível global na promoção e proteção aos
direitos humanos.
O que achou da declaração da presidente Dilma, nos Estados
Unidos, sobre o risco de dar opiniões sobre direitos humanos em outros
países?
Ficamos surpresos quando ela disse, na Universidade de Harvard que
não faria recomendações a outros países, pois considerava isso
“perigoso”, e que não gostaria que fizessem comentários sobre o Brasil. A
ideia de que violações de direitos humanos são assuntos internos de
cada país não reflete o consenso internacional legal. Hoje se reconhece o
princípio da universalidade dos direitos humanos e todos países são
sujeitos ao escrutínio internacional quando se trata do respeito aos
direitos fundamentais.
O senhor tem acompanhado os debates sobre a Comissão da Verdade no Brasil?
São inegáveis os méritos da Comissão Nacional da Verdade para o
esclarecimento de graves violações aos direitos humanos ocorridas
durante a ditadura e a consolidação da democracia no Brasil. Porém, o
país foi condenado no fim do ano passado pela Corte Interamericana de
Direitos Humanos a promover justiça penal com relação aos
desaparecimentos e execuções de militantes na Guerrilha do Araguaia, bem
como em todos os demais casos de violação à Convenção Americana sobre
Direitos Humanos.
Ainda há um debate interno sobre o cumprimento dessa sentença.
O cumprimento é obrigatório. Não se trata somente dos compromissos
internacionais assumidos pelo Brasil, mas também de deixar claro que o
país respeita plenamente o Estado de Direito. Nenhum cidadão, governo ou
instituição civil ou militar está acima da lei, assim como nenhum
período da história brasileira pode ficar à margem de investigações.
Acha que parentes ou representantes de pessoas que foram
vítimas da ditadura militar devem fazer parte da Comissão da Verdade?
Ela deveria acolher representantes dos militares?
Pela lei que cria a Comissão Nacional da Verdade, os seus membros
devem ser brasileiros de reconhecida idoneidade e conduta ética,
identificados com a defesa da democracia e institucionalidade
constitucional, bem como o respeito aos direitos humanos. Outro
requisito importante é a neutralidade do indicado para o exercício de
suas funções, ou seja, que a Comissão não seja integrada por pessoas
envolvidas nos eventos de repressão ou de resistência a serem
investigados. O essencial é a sólida credibilidade de cada membro da
comissão, independente de seu pensamento ou afiliação política. A
confiabilidade do relatório final dependerá não somente do rigor
metodológico dos trabalhos mas também da autoridade moral dos
signatários.
Procuradores federais vem tentando responsabilizar agentes de Estado envolvidos
em casos de desaparecidos políticos, acusando-os pelos crimes de
sequestro e ocultação de cadáver. Mas a primeira denúncia, contra um
coronel da reserva, foi rejeitada. Como vê a iniciativa?
A decisão da Justiça Federal do Estado do Pará de rejeitar a denúncia oferecida
pelo Ministério Público Federal contra o coronel da reserva Sebastião
Rodrigues de Moura, pelo crime de sequestro qualificado, foi uma
oportunidade perdida para garantir justiça em casos de violações de
direitos humanos cometidas durante a ditadura.
Por quê?
O juiz não levou em conta que, segundo a jurisprudência
internacional, leis de anistia não podem ser aplicadas a casos de
desaparecimento forçado. Enquanto o cadáver de uma vítima de sequestro
por agentes do Estado não for recuperado, é impossível determinar quando
o crime prescreveu, então a anistia não se aplica. A suprema corte
chilena, por exemplo, admitiu e sustentou esse princípio.
Na prática, essa norma é importantíssima pois obriga os agentes do
Estado que cometeram sequestros a esclarecerem o destino das vitimas.
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