segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

"ouriços" vs. "raposas"

Ronald Dworkin e o sentido da vida


O mundo acordou, no último dia 14 de fevereiro, abatido pela notícia do falecimento de Ronald Dworkin, considerado por muitos o mais original e poderoso filósofo do Direito da língua inglesa [1]. A leucemia o abateu em Londres, aos 81 anos. A academia fica diminuída pela sua ausência.
Particularmente, tenho motivos de sobra para ficar entristecido. Sou um grande admirador de seu pensamento. Não por acaso, meu único livro tem o nome Levando o Direito a Sério — e é, na prática, do título à última linha, uma homenagem ao trabalho de Dworkin, uma tentativa de compreendê-lo e de traduzi-lo para o direito brasileiro.
Pois foi logo nesse mesmo 14 de fevereiro que surgiu a oportunidade, pontual e inadiável, de ocupar esse prestigiado espaço da ConJur. Então, não tenho como escrever sobre outro assunto: falaremos um pouco sobre Dworkin.
É provável que a maioria de vocês já tenha alguma noção a respeito das principais teses desse jusfilósofo norte-americano. Para citar apenas uma, bem conhecida, Dworkin defendeu que o juiz não dispõe de uma margem de liberdade para aplicar o Direito como lhe parece mais justo, ou mais razoável. Em termos mais técnicos, Dworkin não reconhecia ao juiz o chamado poder discricionário no ato decisional. Nem mesmo nos denominados casos difíceis, ou seja, naqueles casos em que os parâmetros normativos vigentes (Constituição, lei, precedentes) não apresentariam, de forma inequívoca, a resposta a ser dada pelo Direito. Dworkin não concebia que pudesse haver um momento em que juiz deixasse o Direito de lado e entrasse em campo, na falta de outra solução melhor, com seus próprios juízos pessoais. Para ele, o Direito é um sistema tão rico e tão abrangente que seria altamente improvável que ele próprio (o Direito) não estivesse suficientemente apto a fornecer padrões suficientes para que o caso fosse resolvido. Bastava que ele fosse corretamente interpretado. Assim, o juiz deveria encontrar a solução para o caso (mesmo o mais difícil, pois) no próprio Direito, por mais que seja sempre controvertido o que exatamente o Direito, interpretado na luz de um caso específico, prescreve como correto.
Como é que se faz isso? De acordo com Dworkin, quando diante de uma controvérsia desse tipo, o juiz estaria — ao invés de “livre” para decidir a contenda — obrigado a argumentar com princípios, ou seja, com argumentos de natureza moral que favorecessem os direitos em disputa. Notem: ao invés de liberdade, de discricionariedade judicial, princípios. Essa seria a responsabilidade política do juiz: procurar, nos princípios que compõem o Direito como um todo, a melhor solução para o caso. Quer dizer, os princípios passam a ter força normativa — o Direito é um sistema de regras e princípios — e o juiz, portanto, o dever de aplicá-los corretamente. Assim, segundo Dworkin, haveria uma resposta correta para cada caso (the one right answer), e caberia ao juiz, interpretando princípios, o dever de encontrá-la.
Alguns de vocês talvez pensem que essa distinção (entre agir discricionariamente e interpretar corretamente o Direito) não tem consequência prática; ou melhor, que dificilmente se saberá, pelos fundamentos de uma decisão judicial, quando o juiz agiu de uma forma ou de outra. De fato, isso não é algo simples de se fazer. Mas pensem nisso (no dever de fornecer a resposta correta), como uma obrigação de meio, e não de resultado. É importante, para o caráter democrático de uma comunidade politica, que o juiz saiba que não está autorizado a decidir discricionariamente – o que, diga-se, nada tem a ver com independência judicial. Tema para outra conversa.
Mas me permitam, aqui, uma nota à margem. Vejam que curioso: como percebem, Dworkin propôs o ingresso dos princípios na prática do direito com o objetivo de conter os poderes do juiz, não de ampliá-los. Trata-se da prova mais eloquente, na minha opinião, de que sua obra ou bem não foi lida, ou bem não foi devidamente assimilada pelo establishment jurídico brasileiro. Salvo raríssimas exceções, os princípios aparecem na argumentação jurídica em geral – e na fundamentação de decisões em específico – como uma forma de justificar a abertura das possibilidades interpretativas do Direito. Quando, para Dworkin, como vimos, é precisamente o contrário. Reparem: a prática do Direito é, sim, interpretativa. Mas há interpretações melhores do que outras, mais bem ajustadas à integridade do Direito – e, nesse sentido, corretas. E é para construir essa proposta interpretativa (a melhor, ou a correta) que o juiz tem de se entender com princípios jurídicos.
Enfim. Não, tenho como, aqui, discutir esse tema, absolutamente complexo, com maior profundidade. Guardemos, contudo, a mensagem: discricionariedade judicial e princípios estão, para Dworkin, em rota de colisão.
O título do texto
Bem ou mal entendidas, as teses, digamos assim, mais jurídicas de Dworkin são razoavelmente conhecidas — do meio acadêmico, ao menos. Há bastante literatura a respeito. Mas há um lado menos conhecido (ou explorado) desse grande autor. E é sobre este que vamos conversar agora.
Vocês sabiam que, além de escrever muito sobre Direito e Filosofia, Dworkin também desenvolveu uma teoria sobre como viver bem? É isso mesmo: no seu último livro, Justice for Hedgehogs (algo como Justiça aos Ouriços),somos apresentados a uma releitura de uma tese filosófica antiga, denominada de teoria da unidade do valor. Na versão dworkiniana, ela serve para subsidiar a afirmação de que as verdades sobre “o que é bom”, sobre “como viver bem” ou sobre “como ser bom”, são não só coerentes, mas também se apoiam reciprocamente. Haveria, assim, conformidade entre valores morais e éticos. Mais: haveria verdades objetivas (e não apenas subjetivas, pois) a respeito do valor.
Deixem que eu explique isso melhor.
Por que justiça “aos ouriços”?
Aqui, a referência é feita a um trabalho de Isaiah Berlin, um filósofo moral que, num estudo sobre Tolstoi, faz uma comparação entre pensadores do tipo ouriços — movidos por uma ideia central, que explicam a diversidade do mundo com referência a um único sistema — e pensadores do tipo raposas — que entendem que a diversidade do mundo, com seus fins vários e incompatíveis, não autoriza o uso de um único sistema explicativo. Berlin seria uma raposa; Dworkin, um ouriço. Ambos pegaram o mote de uma conhecida frase do filósofo grego Arquíloco, segundo quem “a raposa sabe muitas coisas, mas o ouriço sabe uma grande coisa”. Para Dworkin, a tal grande coisa seria o valor.
“Ser bom” e “viver bem”?
Dworkin está, aqui, falando sobre ética e moral. No livro, ele descreve uma teoria sobre o que é viver bem (Ética) e sobre aquilo que, se quisermos viver bem, nós devemos fazer e deixar de fazer pelos outros (Moral). E encaixa uma metáfora: imaginem pessoas nadando em raias separadas de uma piscina. Estes indivíduos podem trocar de raia para auxiliar os outros nadadores, porém não para machucá-los. Imaginaram? A moral, nesta ilustração, definiria as raias que separam os nadadores; e estipularia quando alguém deve trocar de raia — para ajudar os outros nadadores, sempre — e em que condições seria proibida a troca de raias. A ética estaria ocupada em definir o que é nadar bem em sua própria raia.
Verdade objetiva a respeito de valores?
Dworkin crê que algumas instituições e práticas são realmente injustas independentemente do que eu ou vocês pensemos a respeito delas. Em palavras mais simples (mas ainda dele), a escravidão, ou a prática da tortura de crianças por diversão, por exemplo, são erradas em si, quer dizer, continuariam sendo erradas mesmo que a maioria (ou que todos), por qualquer razão, pensassem o contrário. Não se trata de uma questão de opinião, mas de argumentação moral. Eis a questão. Um julgamento valorativo (uma opinião informada a respeito da correção ou do erro de alguma prática) depende dos argumentos (morais) que o sustentam — e não do recurso a algum tipo de realidade que extrapole essas razões. E essa argumentação, para ser considerada consistente, tem de dar o devido valor à dignidade humana.
Dignidade humana?
Dworkin colocou a dignidade humana como centro de sua teoria moral. Para ele, se estivermos dispostos a levar a sério nossa dignidade, devemos obedecer a dois princípios éticos: o princípio do respeito próprio (principle of self-respect) e o princípio da autenticidade (principle of authenticity). De acordo com o primeiro, cada pessoa deve levar a sua vida a sério, ou seja, deve aproveitar, ao invés de desperdiçar, a sua oportunidade de viver: há, com efeito, uma importância objetiva em se viver bem, de modo que devemos tratar nossas vidas como dotadas dessa importância. Pelo segundo, cada um tem a responsabilidade de identificar aquilo que conta como sucesso em sua própria vida (já que você se leva a sério — pondera o autor —, viver bem expressa o seu próprio estilo de vida, a maneira com a qual você a encara).
Afinal: como, então, devemos viver?
Para Dworkin, viver bem, ou ter uma vida boa, é matéria de interpretação. Trata-se, ambos, de conceitos interpretativos e interdependentes. Ainda que distintos. Viver bem significa o esforço em criar uma vida boa, sujeita apenas a certas restrições essenciais à dignidade humana. O autor desenvolve a hipótese de que viver bem é dar um sentido ético à vida, como um pianista dá sentido à música que toca. Dworkin afirma que o valor final de nossas vidas é adverbial, e não adjetivo, querendo dizer que o valor se encontra mais no meio (ou no modo como se vive) do que no resultado desta performance (é o que chama de performance value). Voltando à analogia com a arte, é como comparar uma pintura original, produto de uma determinada performance, que se valoriza, com uma mera cópia da tela: ainda que o resultado possa ser parecido, o valor estaria na performance, na construção da obra. O autor acredita que devemos viver uma vida que nos dê orgulho mesmo nos momentos adversos. E essa ambição somente é explicável quando acreditamos ter a responsabilidade de viver bem.
E o sentido da vida?
De acordo com Dworkin, devemos tratar a construção de nossas vidas como um desafio, que podemos enfrentar de maneira boa ou ruim. Devemos assumir a ambição de fazer de nossas vidas boas vidas: autênticas e valiosas, ao invés de mesquinhas ou degradantes. Em especial, devemos honrar nossa dignidade. Devemos encontrar o valor de viver — o sentido da vida — em viver bem, tanto quanto encontramos valor em amar, pintar, escrever ou cantar bem. Não há outro valor duradouro ou sentido para nossas vidas — mas isso já são valor e significado suficientes. Na verdade, disse Dworkin, isso é maravilhoso!
Concluindo
Sinceramente? Eu não tenho a menor ideia se Dworkin tem ou não razão, nisso de defender que o ser humano tem a responsabilidade (notem a gravidade disso!) de viver bem. Por tudo o que li, e pelo profundo respeito que tenho pela sua obra, tendo a pensar que sim. Mas, por mais dworkiniano que eu seja (endosso praticamente todas as suas teses sobre o Direito), jamais me arriscaria a escrever uma linha sequer sobre o sentido da vida de outrem.
De qualquer forma, espero ter conseguido despertar a curiosidade de alguns de vocês pelos textos de Dworkin (sejam os jurídicos, sejam os mais, por assim dizer, abrangentes — saibam que o próprio Dworkin, creio, não endossaria uma distinção rígida entre essas categorias). Não sugiro, claro, que se leia Dworkin em busca de uma vida melhor — contudo, se vocês a encontrarem com a ajuda dele, tanto melhor! Meu objetivo aqui, entretanto, foi bem mais modesto: apenas o de mostrar um lado menos explorado desse gigante intelectual, cujo complexo sistema de ideias — como corretamente observou Ronaldo Porto Macedo Jr. na apresentação da versão brasileira da excelente obra Ronald Dworkin, de Stephen Guest —, é uma vítima frequente de interpretações inadequadas e simplificadoras. Apenas isso.
Por fim, uma história real. Acordei hoje com um telefonema e três perguntas: eu sabia que Dworkin havia falecido? Eu aceitaria o convite de escrever neste Diário de Classe alguma coisa sobre ele? Como eu estava?
Sim, eu sabia; sim, eu topo. Como eu estou? Como todo acadêmico: de luto.

[1] As palavras efetivamente empregadas pelo britânico Guardian, no generoso obituário que veiculou em seu website (www.guardian.co.uk), foram: “the most original and powerfull philosopher of law in the English-speaking world”.
Francisco José Borges Motta é promotor de Justiça no Rio Grande do Sul, mestre em Direito Público pela Unisinos.
Revista Consultor Jurídico, 16 de fevereiro de 2013

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