domingo, 1 de julho de 2012

Ativismo Judiciário

Folha de S. Paulo, 1 de julho de 2012.

Carlos Eduardo Lins da Silva
TENDÊNCIAS/DEBATES
Ativismo judiciário e a divisão dos Poderes

Com o Legislativo inerte ou em crise, Brasil e EUA têm cortes supremas que estão, na prática, legislando. Seus membros têm um comportamento ideológico 

Brasil e EUA vivem em 2012 situação institucional em que a corte suprema toma decisões sobre casos polêmicos, profundamente marcados por divisões partidárias e ideológicas, às vésperas de importantes eleições nacionais que podem influir bastante no resultados das urnas.
Aqui, é o julgamento do episódio conhecido como "mensalão", que tem entre os réus figuras importantes do governo Lula. Uma eventual condenação pode abater o ânimo eleitoral do PT e seus aliados -e, claro, a absolvição pode inflamá-lo.
Lá, é a decisão sobre a constitucionalidade do programa do sistema de saúde do país, que foi a principal realização social do governo de Barack Obama. Tivesse sido derrubada, certamente causaria ao presidente sensíveis danos em sua campanha pela reeleição.
A decisão de considerar constitucional o sistema de saúde proposto por Obama, no entanto, veio eivada de sutilezas, que comprovam o caráter ativista da Suprema Corte.
O voto de minerva do presidente da Casa modificou o caráter da lei aprovada pelo Congresso. Transformou o que era uma multa a quem não tivesse seguro-saúde num imposto, o que ainda pode vir a ter novos desdobramentos no futuro.
Independentemente do mérito jurídico das sentenças dadas pelos dois tribunais, elas trarão para a sociedade dos dois países intensos debates e vão realçar ainda mais o crescente protagonismo do Judiciário em relação aos outros Poderes.
O Judiciário, na concepção que "os pais da pátria" deram ao sistema democrático americano (que serviu de inspiração para o Brasil em sua fase republicana), deveria se constituir, segundo um deles, Alexander Hamilton, "no Poder menos perigoso".
As cortes, dizia Hamilton, não teriam "força ou desejo, mas apenas julgamento". Elas não iriam nem fazer leis (tarefa do Legislativo) nem fazer com que elas fossem cumpridas (competência do Executivo).
O fato de os juízes da Suprema Corte não serem submetidos ao voto popular periódico e de terem mandato vitalício (ou, no caso dos ministros do STF, até a idade da aposentadoria compulsória) deveria lhes conferir, na acepção hamiltoniana, autoridade moral assegurada pela independência e imparcialidade que essa condição lhes garantiriam.
A crise de legitimidade que em maior ou menor grau vem afetando em especial o Poder Legislativo nas sociedades que adotaram o presidencialismo de modelo americano, no entanto, tem dado ao Judiciário a oportunidade de desempenhar um papel de muito maior ativismo.
No caso do Brasil, a inércia do Congresso em diversas situações deu ao STF a chance de praticamente legislar em várias situações recentes. Sem entrar na discussão se o que se fez foi certo ou errado, com isso o STF afetou de algum modo a essência da teoria da divisão dos Poderes.
Além disso, a Suprema Corte e o STF têm, neste século, reproduzido as divisões partidárias que caracterizam o Congresso dos dois países.
Nada mais expressivo do que a votação por cinco votos a quatro em 2000 sobre decisão da Justiça da Flórida, que -na prática- garantiu a vitória de George W. Bush sobre Al Gore na eleição presidencial.
Há um comportamento nitidamente ideológico de juízes da Suprema Corte e de ministros do STF em pronunciamentos públicos, antes raros e a cada dia mais frequentes, sobre temas da pauta política e às vezes até mesmo sobre o conteúdo de processos que ainda vão ser julgados por eles mesmos.
Isso põe em risco a sua presunção de idoneidade para decidir sobre assuntos a respeito dos quais eles, pelo menos em princípio, não deveriam ter pré-juízos formados, que somente deveriam resolver a partir dos autos e das leis vigentes. Tornam-se cada vez mais previsíveis os votos de certos juízes e ministros com base em seu discurso crescentemente partidarizado.
O significado dessa transformação para a democracia no Brasil e dos EUA deveria ser mais bem avaliado pela sociedade das duas nações. Assim, elas poderão decidir se os preceitos que fundaram o Poder Judiciário nesse sistema devem ser mantidos ou modificados para, por exemplo, impor mandatos periódicos a juízes e ministros.
CARLOS EDUARDO LINS DA SILVA, 59, jornalista, é editor da revista "Política Externa" e autor de "Correspondente Internacional" (Contexto). Foi secretário de redação e ombudsman da Folha

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