sexta-feira, 3 de abril de 2015

A cunha

Folha de S. Paulo, 2 de abril de 2015.

Frei Betto

A cunha renana

Já que preferiu governar pelo andar de cima, o PT, sitiado por Cunha e Renan, sabe que terá de continuar negociando seus princípios e projetos
Na Roma antiga, as legiões adotavam diferentes formações militares. Uma delas era a cunha, quando as tropas se moviam em forma de triângulo para encurralar os adversários. A Renânia é hoje a região mais industrializada da Alemanha.
O Tratado de Versalhes (de 1919) a desmilitarizou. Adolf Hitler, porém, violou o tratado e a ocupou com suas tropas. Criou a cunha renana que, ao longo do rio Reno, tinha a função de acuar os inimigos.
O Brasil conhece, agora, sua cunha renana. Tem como vértice o PMDB e amplia o cerco sobre o PT e força o recuo do Executivo.
A brincadeira acabou. O Congresso Nacional já não faz o que o mestre mandar. Sobretudo porque, diante dos escândalos de corrupção, o mestre já não manda as benesses que, antes, quebravam resistências e ampliavam o leque de aliados. Ora, não é porque as vacas estão magras que os bezerros deixam de querer mamar.
Antigos palácios eram cercados, como proteção, por fossos repletos de crocodilos. Hoje, o fosso é político. O Palácio do Planalto, convencido de que todo poder emana do núcleo duro do governo, perdeu a sintonia com o Congresso. E também com o Judiciário, uma das arestas que formam a cunha renana.
Na praça dos Três Poderes não há indícios de que Suas Excelências têm olhos e coração voltados para o Brasil. O foco são as eleições de 2018. O PMDB, como me confessou um de seus dirigentes, cansou de ser acólito do PT. Não se sente devidamente recompensado em número e importância de ministérios. Nem quer ajudar a carregar o pesado piano do ajuste fiscal depois que cessou a música da gastança.
Já que escolheu assegurar sua governabilidade pelo andar de cima (mercado e Congresso Nacional), o PT, sitiado pela cunha renana, sabe que continuará a ser obrigado a negociar seus princípios e projetos. Leia-se: abdicar de seus propósitos originários.
Ainda mais agora que se distanciou do andar de baixo, quer dizer, dos movimentos sociais, e já não faz trabalho político de base. Conta com filiados e eleitores, não mais com militantes.
A cunha renana, sem dúvida, prosseguirá seu avanço até transformar o Planalto em planície --terra arrasada. Haja vice para tentar salvar a aliança inconsútil.
O Planalto sabe que há luz no fim do túnel: os segmentos organizados da expressiva parcela de eleitores que elegeu o atual governo.
Porém, por insensibilidade ao andar de baixo, alvo de políticas sociais e, no entanto, escanteado de participação nas decisões de governo, dificilmente ousará acender a luz no fim do túnel. Não acredita que ela seria capaz de ofuscar a cunha renana e obrigá-la ao recuo.
E lembrar que o partido que agora pensa em se reinventar ou refundar nasceu como expressão política dos pobres, baluarte ético e socialista, e criou as prévias eleitorais interpartidárias, o orçamento participativo, os núcleos de base e a consulta popular.
CARLOS ALBERTO LIBANIO CHRISTO, 70, Frei Betto, é assessor de movimentos sociais e escritor. É autor de "A Mosca Azul - Reflexão sobre o Poder" (Rocco), entre outros livros

sexta-feira, 6 de março de 2015

Gatilhos

Blog do Noblat


Uma democracia que vive de gatilhos

Nosso estado democrático de direto tem sofrido muito nestes tempos. As instituições não mais disciplinam a luta pelo poder
Renan Calheiros (Imagem: Fabio Rodrigues Pozzebom /Agência Brasil)
Pode o  presidente do Senado  recursar sozinho uma medida provisória ?

O senador Renan Calheiros devolveu a medida provisória de desoneração fiscal sob o argumento de que matéria fiscal não se configura nem relevante, nem urgente. O Congresso nem aprovou, nem desaprovou. Apenas recusou-se a apreciar. Pode?
Nas medidas provisórias 22, 232, 135 e 275, por exemplo, de Fernando Henrique e Lula, todas sobre tributos, na mesma situação de hoje, o Congresso aceitou decidir e decidiu. Aprovou as duas primeiras e rejeitou as últimas. Ou seja, a prática da Casa de ontem, não ajuda a decisão do senador Renan de hoje.
Considerar como urgente e relevante o que não é, deturpa a relação entre os poderes da República. É o mau uso das medidas. Mas todos os presidentes da República, desde 1988 o fizeram. E todos os presidentes do Congresso compactuaram com esta deturpação.
Só uma vez, em 2008, Garibaldi Alves devolveu como não urgente, nem relevante uma medida provisória que tratava de filantropia. Aceitá-la já seria deturpação demais.
O que alimenta esta deturpação é o Congresso não decidir no tempo das necessidades da administração federal. Parece que estamos numa democracia de “urgências”. Não vem de hoje.
No regime militar havia o decurso de prazo. Se o Congresso não decidisse em sessenta dias, a matéria estava automaticamente aprovada. Desequilibrava o processo legislativo nacional em favor do Executivo.
Para recusar a MP 669/15, o Senador Renan usou de seu poder discricionário. Discricionário, segundo o Aurélio, é aquilo que é “livre de condições. Ilimitado”.
Segundo a doutrina jurídica, é o espaço de liberdade para avaliar se existe ou não conveniência e oportunidade para dizer sim, ou não.
Mas o que é urgência e relevância? São critérios fluidos que no fundo criam um espaço decisório de liberdade para o agente público.
Esta fluidez pode ser usada para avançar interesses próprios ou partidários ou para evidenciar critérios objetiváveis. Hoje, o autoritarismo ou a democracia se escondem dentro desta fluidez.
Os limites, justificativas e transparência da discricionariedade são hoje a questão fundamental da democracia. Mais do que a própria separação de poderes.
Em muitos casos, a conveniência e oportunidade tem se fundamentado na convicção pessoal ou de interesse político decisório, e que não tem nada a ver com a medida proposta.
Donde a pergunta inicial que fazemos é outra. Pode o Presidente do Senado usar da discricionariedade que a lei lhe confere para implementar uma estratégia política muito além da matéria da medida provisória? Pode o Executivo mandar como Medida Provisória, o que não é?
Nosso estado democrático de direto tem sofrido muito nestes tempos. As instituições não mais disciplinam a luta pelo poder.
Às vezes se tem a impressão que nossa democracia vive, como dizem os engenheiros elétricos, de gatilhos.

terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

Rumo ao impeachment?

Folha de S. Paulo, 25 de fevereiro de 2015.

Alberto Goldman

O impedimento e o desafio da oposição

Os resultados eleitorais foram colhidos, o que não garante ser possível conduzir o país, fazendo o necessário para que ele possa avançar
Estamos iniciando um longo e dramático período político em nosso país. Longo, porque o mandato presidencial é de quatro anos. Dramático, porque Dilma Rousseff e seu partido não têm condições políticas e morais para conduzir o país por mais muito tempo.
Para não se apresentar confessando o estelionato eleitoral, Dilma entregou à nova equipe econômica a missão de implantar medidas de sacrifício da população --que durante a campanha eleitoral dizia que a oposição imporia à nação--, na busca desesperada de superar a estagnação produzida por sua política desastrosa.
Sem autocrítica, pelo contrário, em uma atitude covarde, procura arrastar o PSDB para o mar de lama em que está metida, ao afirmar que, se antes tivesse o governo FHC investigado e punido, não teríamos o que temos agora.
Esconde a sua responsabilidade na articulação de diretores da Petrobras e de seus fornecedores com os partidos de sua base, que objetivou o saque de recursos públicos para suas campanhas (e o enriquecimento de muitos) --o que, agora, emerge de maneira avassaladora.
É isso que destrói toda e qualquer condição moral de condução do país por parte da presidente Dilma Rousseff e seu ministério.
Dilma tratou de montar um ministério com figuras que representam agrupamentos partidários ou grupos de interesse que possam lhe dar o respaldo necessário no Congresso Nacional, para evitar um possível pedido de seu afastamento definitivo do cargo, nos termos da Constituição em vigor, uma sobrevida difícil de obter.
O governo petista está moribundo, e o partido continuará existindo como uma pálida imagem do que já foi no passado, quando, moralmente inatacável, pretendia ser o condutor de uma transformação profunda na sociedade brasileira.
No governo, liderado pelo seu grande chefe, Luiz Inácio Lula da Silva, o PT se corrompeu ao buscar, a qualquer preço, a manutenção do poder. O projeto de uma nova sociedade se frustrou, transformando-se em projetos de subsistência de milhões de brasileiros que vivem na pobreza, mantidos nessas condições para garantir o controle dos seus votos. Não passa disso.
Os resultados eleitorais foram colhidos, mas isso não garante ser possível conduzir o país, fazendo as transformações necessárias para que ele possa avançar econômica, social e politicamente.
Pelo contrário, a forma como esses resultados foram obtidos impõe à presidente e ao seu partido a necessidade de se legitimar perante a maioria do Brasil produtivo, que não vive na dependência do Estado. Tarefa impossível.
O quadro atual é dramático também para a oposição e para os milhões de brasileiros que não veem no governo atual condições para vencer a crise.
Como levar adiante uma transição nos limites da democracia constitucional em que vivemos, rejeitando firmemente qualquer solução que não seja legal, sem ter de aguardar quatro anos para que o país possa abraçar um caminho que abra novas perspectivas de desenvolvimento e de melhoria das condições de vida de nosso povo? Esse é o desafio que está colocado para nós.
Sobra o caminho legal do impedimento, que só acontecerá se o agravamento das condições econômicas e políticas persistirem a ponto de mobilizar o povo e os partidos para uma solução que, de qualquer forma, ainda que legal e democrática, não deixa de ser traumática.
Mas o próprio Lula já declarou, após a queda de Collor, que o povo brasileiro mostrou que o mesmo povo que elegeu um presidente pode tirá-lo. E pode, legalmente!
Pode não haver outra saída.
ALBERTO GOLDMAN, 77, vice-presidente nacional do PSDB, foi governador de São Paulo (2010)

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

Amigo/inimigo

Folha de S. Paulo, 18 de fevereiro de 2015.

Clóvis Rossi

Amigo, inimigo e democracia

Argentina vive período de crispação política terrível; é tudo o que o Brasil não precisa importar
Era uma vez um tempo em que os argentinos --principalmente, mas também outros latino-americanos-- usavam a expressão "ruídos de sabre" para designar movimentos pré-golpistas nas Forças Armadas.
Agora que os sabres, felizmente, foram embainhados, e Deus queira que nunca mais saiam da quietude, os ruídos que se ouvem também são de golpe.
É o que está ocorrendo na Argentina como efeito colateral da marcha convocada pelos promotores para pedir o esclarecimento definitivo e cabal da morte de seu colega Alberto Nisman.
É aquele que denunciou a presidente Cristina Kirchner por, supostamente, ter participado de um esquema para encobrir a participação de agentes iranianos no atentado contra uma entidade judaica que causou 85 mortos --o maior atentado terrorista da história latino-americana.
Para os partidários da presidente, reunidos, por exemplo, no coletivo "Carta Abierta", trata-se do ato de um "partido judicial em gestação, que parece cumprir o papel desestabilizador que em outros tempos cumpriram as Forças Armadas".
Rebate, na oposição, por exemplo, o ex-deputado Fernando Iglesias, fundador do grupo "Democracia Global", que, em artigo para "La Nación", diz que o "kirchnerismo combina elementos democráticos com ditatoriais" e emenda que o caso Nisman somou a esses elementos um outro, "característico de toda ditadura: quem desafia o poder morre violentamente".
Não surpreende, pois, que o jornalista Carlos Gurovich, judeu argentino que emigrou para Israel e é produtor da TV "i24 News", compare o momento atual a um mergulho no passado, mais exatamente nos sangrentos anos 70 --anos que os sabres eram desembainhados com notável facilidade e ferocidade.
Como tenho amigos nos dois lados da guerra de ruídos, é sempre desconfortável escrever sobre a Argentina. Mas o sentido comum manda concordar com o promotor Ricardo Sáenz quando ele diz a Mariana Carneiro, desta Folha, que o que está havendo "é uma lógica de amigo e inimigo que não beneficia em nada a sociedade e muito menos o Poder Judiciário". Bingo.
Essa lógica perversa é uma criação do kirchnerismo, em especial de Cristina (Néstor era mais flexível).
Como afirma Gurovich, "Kirchner e seus acólitos não querem aceitar nenhum outro ponto de vista ou realidade que não seja a que criaram, e qualquer um que discorda é acusado de querer destruir o projeto deles para uma nova Argentina".
Como já passei faz tempo da idade da inocência, não acredito mais nem em projetos salvacionistas nem em que a oposição a eles esteja pensando apenas no bem da pátria.
Por esse ceticismo, me surpreende que o Brasil esteja importando essa dualidade "amigo/inimigo", essa ideia de que há um bando disposto a salvar a pátria contra outro que quer enterrá-la, o bem contra o mal.
Essa lógica emburrece, como se viu na recente campanha eleitoral. Lástima é que esteja persistindo mesmo depois dela.
O país já tem problemas demais para agregar a eles uma crispação política absurda.

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

"golpismo daquelas elites"

"Resolução Política
Reunido em Belo Horizonte, no dia 6 de fevereiro de 2015, nas comemorações dos 35 anos do Partido dos Trabalhadores, o Diretório Nacional resolve:
Expressar ampla solidariedade e defender o governo da presidenta Dilma contra os ataques da oposição de direita.
Condenar a ofensiva e denunciar as tentativas daqueles que investem contra a Petrobrás, pois, a pretexto de denunciar a corrupção que sempre combatemos, pretendem, na verdade, revogar o regime de partilha no pré-sal, destruir a política de conteúdo nacional e, inclusive, privatizar a empresa. É nosso dever fortalecer a Petrobrás e valorizar seus trabalhadores. É nossa tarefa também defender a democracia e as conquistas do povo, denunciar as tentativas de desqualificar a atividade política e de criminalizar o PT.
Reafirmar o posicionamento adotado em Fortaleza em dezembro último, de apoiar as investigações em curso sobre a corrupção na Petrobrás e exigir que elas sejam conduzidas rigorosamente dentro dos marcos legais e não se prestem a ser instrumentalizadas, de forma fraudulenta, por objetivos partidários.
O PT reafirma a disposição firme e inabalável de apoiar o combate à corrupção.
Qualquer filiado que tiver, de forma comprovada, participado de corrupção, deve ser expulso.
Conclamar a militância a contribuir para a criação de uma articulação permanente de partidos, organizações, entidades – uma força política capaz de ampliar nossa governabilidade para além do Parlamento e de criar condições para realizar reformas estruturais no País;
Reforçar as campanhas pela reforma política e pela democratização da mídia. Frente ao permanente flerte com o golpismo daquelas elites que não conseguem vencer e nem convencer pelas ideias, o PT deve tomar a iniciativa de propor a unificação das propostas democráticas pela reforma política e construir uma ampla mobilização social para formar em torno da reforma política democrática uma vontade majoritária na sociedade. Partindo da proibição do financiamento empresarial e da garantia do financiamento público, buscaremos construir uma plataforma unitária na qual seja incorporada o voto em lista preordenada e paritária em termos de gênero. Além disso, o DN apoia a declaração de inconstitucionalidade do financiamento empresarial às campanhas eleitorais em curso no Supremo Tribunal Federal.
Apoiar a engajar a militância em mobilizações sociais, a exemplo das jornadas convocadas pela CUT e na organização do 1o. de Maio;
Propor ao governo que dê continuidade ao debate com o movimento sindical e popular, no sentido de impedir que medidas necessárias de ajuste incidam sobre direitos conquistados – tal como a presidenta Dilma assegurou na campanha e em seu mais recente pronunciamento. Nesse sentido, é necessário formalizar o processo de diálogo tripartite entre governo, partido e movimento sindical e popular, principalmente no que se refere às Medidas 664 e 665, bem como a definição de uma agenda comum pelas reformas democrático-populares;
Recolocar na ordem do dia a necessidade de aprovar a criação de um imposto sobre grandes fortunas;
Incentivar o debate sobre a necessidade de buscar novas fontes de receita para financiar projetos sociais e investimentos em infraestrutura, o que implica reformar o atual sistema tributário -- desigual, injusto e regressivo, pois grava a produção, os salários e o consumo popular, ao passo que poupa a riqueza, o patrimônio e a especulação;
Preparar o partido para a disputa das eleições municipais de 2016, recuperando a importância de difundir o modo petista de governar;
Convocar o conjunto da militância a engajar-se nos debates do 5o. Congresso, que será também aberto à participação de simpatizantes. O PT só ganha sentido se ele for expressão de suas bases, que devem ser ouvidas sempre para decidir os rumos do partido.
Por fim, no curso desta celebração histórica do nosso 35o. aniversário, saudamos o heroísmo do povo cubano que, por sua resistência, começa a quebrar o bloqueio imposto durante décadas pelo imperialismo. Saudamos também a vitória do novo primeiro-ministro da Grécia, Alexis Tsipras, do Syriza, derrotando a política de austeridade fiscal, a quem desejamos êxito em sua batalha contra as políticas neoliberais que vêm revogando direitos e promovendo recessão e desemprego na Europa. Congratulamo-nos, ainda, com o presidente da Bolívia, Evo Morales, que há pouco iniciou seu novo mandato presidencial – conosco irmanado na luta internacionalista, especialmente na integração latino-americana e caribenha.
Belo Horizonte/MG, 06 de fevereiro de 2015
Diretório Nacional do Partido dos Trabalhadores"

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

Freddie Mercury e Pepe Legal

Folha de S. Paulo, 5 de fevereiro de 2015.

A falência e o deboche

Sejamos absolutamente francos: o Brasil é uma ruína (ou, na melhor das hipóteses, está uma ruína).
Um país na iminência do racionamento de água e de energia elétrica encontra-se em estado falimentar. Mas, se fosse apenas uma crise hídrica e/ou energética, ainda dava para acreditar que Deus, tido como cidadão brasileiro, daria um jeito, mandando chuva suficiente para abastecer os reservatórios.
Acontece que a ruína é também moral/ética, econômica, social, política, de ideias, de tudo, a rigor.
Para não voltar muito ao passado, examinemos rapidamente o cenário econômico, tal como lembrado por Delfim Netto, na sua coluna desta quarta-feira (4), na Folha.
"Não é possível ignorar que em 2014, quando a única preocupação do governo foi a sua vitória numa intensa e cruel campanha eleitoral, as consequências foram muito ruins: deficit primário de 0,6% do PIB; deficit fiscal total de 6,7% do PIB; gasto com juros para o pagamento da dívida de R$ 250 bilhões, em torno de 5% do PIB, acompanhados por um aumento da relação dívida pública bruta/PIB para 63,4% do PIB, por uma taxa de inflação de 6,41% e por um surpreendente deficit em conta corrente de US$ 91 bilhões, 4,2% do PIB".
Faltou dizer que o crescimento, se for zero, será um bom resultado.
Passemos para outra ruína, a ética, e citemos outro colunista da Folha, Matias Spektor:
"Estima-se que a roubalheira envolvendo cofres públicos tenha custado até 5% do PIB só na última década. E quando Collor foi posto para fora, em 1992, o índice de confiança nos políticos era de 31%.
Treze anos depois, durante o mensalão, era de apenas 8%".
Spektor lembra que ainda está para ser contabilizado o pai de todos os escândalos, o "petrolão".
Digo o pai de todos porque é o primeiro, pelo menos até onde vai minha memória (que é de longo alcance), em que foram para a cadeia executivos de grandes empresas.
Ou seja, é uma das primeiras vezes em que são apanhados não apenas os corruptos de costume (em geral funcionários públicos ou políticos) mas também os corruptores (o lado privado da corrupção).
Nesse cenário, o que se poderia esperar da classe dirigente seriam demonstrações de preocupação, a busca urgente de respostas, providências capazes de estancar uma e outra sangria.
O que se viu, no entanto, neste domingo, foi o deboche.
Pelo excelente relato de Bruno Boghossian, na festa da vitória de Eduardo Cunha (ela, em si, já é um deboche), os dois principais articuladores políticos do governo foram ridicularizados.
Aloizio Mercadante (Casa Civil) foi chamado de Freddie Mercury, vocalista já morto do grupo Queen, pelo seu bigode, ao passo que Pepe Vargas (Relações Institucionais) virava Pepe Legal, o desastrado personagem de desenho animado.
Quando o deboche se dá entre companheiros de base governista, tem-se um retrato acabado da ruína política em que se encontra a pátria amada.
Tudo somado, o fato é que três ruínas combinaram encontro neste fevereiro.

O ovo da serpente?

Folha de S. Paulo, 5 de fevereiro de 2015.

Parecer flerta com golpismo, diz petista

Análise sobre viabilidade de eventual pedido de impeachment de Dilma foi encomendada por advogado de FHC
Presidente do PT afirma não haver base jurídica, mas internamente classifica documento como 'ovo da serpente'
DE BRASÍLIA O presidente do PT, Rui Falcão, classificou de "flerte com o golpismo" o parecer jurídico que afirma haver fundamentos para pedido de impeachment da presidente Dilma Rousseff por causa do escândalo da Petrobras.
"Não vejo nem base jurídica nem base política para isso. A presidente Dilma foi eleita e está conduzindo o país conforme o programa vitorioso nas urnas. Essas tentativas que são aqui ou ali ensaiadas, de flerte com o golpismo, não levo a sério porque a população brasileira está muito firme com a ideia da democracia. São chuvas de verão", afirmou o petista.
Conforme a Folha revelou nesta quarta (4), o parecer em questão foi produzido pelo advogado Ives Gandra da Silva Martins por solicitação de José de Oliveira Costa, que advoga para o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), do PSDB.
Costa nega que o documento tenha caráter político. Diz que o encomendou o parecer a partir da dúvida sobre se é possível iniciar um processo de impedimento por responsabilidade civil. Segundo ele, a peça seria usada se algum cliente que tivesse essa mesma dúvida.
'OVO DA SERPENTE'
Falcão comentou o caso com a imprensa após reunião com a bancada de deputados federais do partido.
Segundo relato de parlamentares que estavam no encontro, a portas fechadas ele classificou o parecer como "ovo da serpente" a ser combatido pela militância petista.
O parecer de Martins conclui que há elementos para que seja aberto o processo de impeachment por improbidade administrativa "não decorrente de dolo [intenção], mas de culpa". Culpa, em direito, escreve Martins, são as figuras da "omissão, imperícia, negligência e imprudência".
Um dos principais temores do Planalto é que o presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), que nunca teve boa relação com o governo, dê sequência a eventual pedido de impedimento de Dilma.