Anos de chumbo: comandante impõe silêncio ao Exército
Unidades da força são obrigadas a não colaborar com as investigações sobre os crimes da ditadura
por Chico Otavio
22/08/2014 6:00 / Atualizado 22/08/2014 8:57 O Globo
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Íntegro: Foto do Dops comprova que Raul Amaro estava bem ao ser preso. Exército nunca divulgou prontuário médico - ARQUIVO NACIONAL
RIO
— O comandante do Exército, general Enzo Peri, proibiu os quartéis de
colaborar com as investigações sobre as violências praticadas em suas
dependências durante o regime militar. Em ofício datado de 25 de
fevereiro, o general determinou que qualquer solicitação sobre o assunto
seja respondida exclusivamente por seu gabinete, impondo silêncio às
unidades. Por entender que a medida é ilegal, o Ministério Público
Federal do Rio de Janeiro (MPF-RJ) vai pedir à Procuradoria Geral da
República que ingresse com representação contra o comandante.
O
ofício foi usado pelo subdiretor do Hospital Central do Exército (HCE),
coronel Rogério Pedroti, para negar ao MPF-RJ o prontuário médico do
engenheiro Raul Amaro Nin Ferreira, que morreu na unidade em 12 de
agosto de 1971. O documento médico poderia comprovar a suspeita de que
Raul, que foi preso pelo DOPS na noite de 31 de julho, na Rua Ipiranga
(Flamengo), não teria resistido às sessões de tortura. No ofício, Enzo
Peri informa que a decisão abrange os pedidos feitos pelo “Poder
Executivo (federal, estadual e municipal), Ministério Público,
Defensoria Pública e missivistas que tenham relação ao período de 1964 e
1985”.
— O Ministério Público está adotando as medidas
necessárias para remover esses obstáculos às investigações e
responsabilizar os servidores que sonegam informações. De qualquer
forma, é lamentável que o comando atual do Exército de um Estado
Democrático de Direito esteja tão empenhado em ocultar provas e proteger
autores de sequestros, torturas, homicídios e ocultações de cadáver —
lamentou o procurador da República Sérgio Suiama.
LEI EXCLUI COMANDANTE
Suiama,
responsável pelo procedimento que investiga a morte de Raul Amaro,
advertiu ao subcomandante do HCE que a Lei Complementar 75/93, que
regulamenta o Ministério Público da União, autoriza que os pedidos de
informações sejam encaminhados diretamente às unidades.
O
procurador disse que as exceções — casos em que os pedidos só podem ser
feitos pelo procurador-geral da República e não pelos procuradores de
primeiro grau — não incluem o comandante do Exército. “A lei concede tal
prerrogativa apenas para presidente e vice-presidente da República,
membros do Congresso Nacional, ministros de Estado e chefes de missões
diplomáticas”, escreveu Suiama ao coronel Rogério Pedroti.
O
prontuário da vítima nunca foi divulgado. O engenheiro foi detido por
uma radiopatrulha quando voltava de uma festa. Os policiais resolveram
prendê-lo depois de encontrar em seu carro dois desenhos que foram
considerados mapas. O primeiro ensinava a sair do apartamento do cunhado
de Raul, que morava em São Paulo, e o segundo era o caminho para a
própria casa do engenheiro.
O preso foi levado no dia seguinte
à prisão para o Destacamento de Operações do Exército do 1º Exército
(DOI I), na Rua Barão de Mesquita. Torturado, foi transferido às pressas
para o Hospital Central do Exército, onde morreria dez dias depois. O
corpo foi devolvido à família. Um tio de Raul, médico legista, constatou
que a vítima sofrera agressões e apresentava a equimoses nas pernas.
—
Desde o primeiro momento, o Exército tem negado sistematicamente
informações sobre a morte. O ofício do comandante é mais uma
demonstração que eles querem impedir o esclarecimento. Esse silêncio é
emblemático. Quando se omitem, estão assumindo uma posição — criticou
Felipe Nin, sobrinho de Raul Amaro.
Raul era funcionário do
Ministério da Indústria e Comércio e conseguiu uma bolsa de estudos na
Holanda, mas nem chegou a usufruí-la. Documentos produzidos na época
pelo Serviço Nacional de Informações (SNI) descrevem o engenheiro como
militante do MR-8 e que sua casa funcionava como aparelho do grupo. Em
1994, a família obteve na Justiça sentença definitiva que considerou o
Estado culpado por sua morte. O depoimento de um soldado que viu Raul
ser torturado nas dependências do DOI I foi fundamental para ganhar a
causa.
— Causa perplexidade o Hospital Central do Exército não
ter autonomia para entregar ao Ministério Público Federal registros dos
prontuários de presos políticos. Trata-se de mais um fato vergonhoso na
história de nosso país, pois não bastasse as Forças Armadas não abrirem
seus arquivos, ainda tentam impedir o MPF e a Comissão da Verdade de
cumprirem com suas funções e negam prontuários médicos — comentou a
presidente da Comissão Estadual da Verdade, Nadine Borges.
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LAUDO COMPROVA TORTURA
Desde
setembro de 2013, a CEV também aguarda os registros solicitados ao
Exército de todos os prontuários de presos políticos atendidos no HCE
durante o regime militar. Laudo do médico-legista Nelson Massini,
apresentado na semana passada pela comissão, sustentou que o engenheiro
foi torturado em pelos menos três ocasiões durante a semana em que
permaneceu no HCE, as últimas delas na véspera da morte.
O
comandante do Exército, procurado pelo GLOBO para comentar a decisão,
não retornou o pedido do jornal encaminhado por mensagem eletrônica ao
Centro de Comunicação Social (Cecomsex) da Força em Brasília até as 21
horas de ontem.
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