O Globo, 20 de julho de
2014
Em tribunais de contas pelo
país, 23% dos conselheiros respondem ações na Justiça
Maior parte deles é escolhida por critérios
políticos
por Chico
de Gois
20/07/2014
0:11 / Atualizado 20/07/2014 23:01
BRASÍLIA
— Os Tribunais de Contas dos Estados (TCEs) são responsáveis por examinar os
gastos dos agentes públicos, apontar irregularidades e superfaturamentos em
obras e serviços, e tentar evitar que recursos governamentais sejam
desperdiçados. Com o advento da Lei da Ficha Limpa, esses órgãos passaram a ter
uma responsabilidade ainda maior, uma vez que lhes compete encaminhar aos
Tribunais Regionais Eleitorais (TREs) a relação de administradores que tiveram
as contas com parecer negativo — o que pode impedi-los de se candidatar a
cargos eletivos. Mas toda essa austeridade para o público externo nem sempre se
verifica entre os próprios conselheiros.
A maior
parte deles é escolhida por critérios políticos; muitos têm parentes
importantes, e há pelo menos dez casos em que a Justiça os afastou da função
após descobrir irregularidades, proibindo-os em alguns casos até mesmo de
passar a menos de 100 metros da instituição que deveria zelar pela boa
aplicação do dinheiro público. São esses tribunais e conselheiros que cuidarão
das contas dos 27 governadores eleitos neste ano e das Assembleias
Legislativas, que, juntas, têm 1.080 deputados estaduais. Embora não avaliem as
contas individuais desses parlamentares, os conselheiros são responsáveis por
aferir os gastos do Legislativo, além dos Tribunais de Justiça e dos
Ministérios Públicos.
Pesquisa
realizada pela ONG Transparência Brasil aponta que 44 conselheiros (23%)
respondem a ações na Justiça ou até tiveram contas rejeitadas. Além do subsídio
de R$ 26.589 e da vitaliciedade no cargo, os que obtêm uma cadeira em um
tribunal de contas têm direito a carro com motorista, diárias, e, em alguns
casos, verba para aluguel e até 14º e 15º salários.
A
Transparência Brasil demonstrou, no mesmo levantamento, que essas máquinas
custam caro ao contribuinte. Há situações, de acordo com a pesquisa, em que os
gastos com os tribunais correspondem a 87% do orçamento da Assembleia
Legislativa do estado. É o caso, por exemplo, do Rio de Janeiro. O orçamento
para 2014 desta é de R$ 681,5 milhões, e o do TCE, R$ 593 milhões. O Amazonas
vive situação semelhante. Enquanto a Assembleia tem gasto estimado em R$ 222,8
milhões, o TCE tem uma verba de R$ 185,6 milhões (83%).
Os 27
TCEs mantêm 189 conselheiros — 2/3 indicados pelo Legislativo, e 1/3 pelo
Executivo. O Tribunal de Contas da União (TCU) tem nove ministros e cuida da
prestação de contas do presidente, do Congresso e da administração direta e
indireta. A maior parte dos indicados para os tribunais de contas é de
ex-deputados, ex-secretários ou parentes. Por imposição constitucional, somente
54 são indicações mais técnicas, de servidores de carreira dos próprios
tribunais e do Ministério Público.
Cientes
das críticas que parte da sociedade dirige aos TCEs, a Associação dos Membros
dos Tribunais de Contas (Atricon) se reúne no mês que vem, em Fortaleza, para
discutir propostas de mudanças no funcionamento desses tribunais. Uma das
ideias é exigir a aplicação da Lei da Ficha Limpa para os novos conselheiros e
que haja quórum qualificado para a votação dos indicados — hoje, isso ocorre
por maioria simples.
Apesar de
a Constituição de 1988 exigir dos candidatos a conselheiros “idoneidade moral”,
“reputação ilibada”, “notórios conhecimentos jurídicos, contábeis, econômicos e
financeiros ou de administração pública”, o que se nota é que essas atribuições
são letras mortas nos momentos das indicações. Entre os que ocupam cargo nos
TCEs, há um condenado por homicídio — que já cumpriu a pena —, acusados de
corrupção passiva, falsidade ideológica, formação de quadrilha, lavagem de
dinheiro e por aí vai. Esse currículo, que impediria a posse de qualquer
candidato ao serviço público, nem sempre é levado em consideração quando o
escolhido para o cargo de julgador das contas públicas é um político, amigo de
poderosos.
Em
Alagoas, por exemplo, segundo o levantamento do Transparência Brasil, o
conselheiro Luiz Eustáquio Toledo foi condenado a seis anos de prisão por matar
a própria mulher. No Rio, os conselheiros José Gomes Graciosa e Jonas Lopes de
Carvalho Júnior respondem a ações penais no Superior Tribunal de Justiça (STJ)
por corrupção passiva. Em Rondônia, o ex-deputado estadual Francisco Carvalho
da Silva, o Chico Paraíba, foi pego na Operação Dominó, da Polícia Federal, que
acusou diversos parlamentares do estado, em 2006, de desviarem R$ 70 milhões
dos cofres da Assembleia Legislativa por meio de contratos falsos.
DECISÃO
JUDICIAL AFASTA CONSELHEIROS
Os
problemas com a Justiça não ficam apenas na tramitação fria dos processos. Em
alguns casos, os indícios de irregularidades são tão flagrantes que os
conselheiros foram afastados de suas funções e proibidos de pisar no TCE. O
Amapá é o caso mais notório. Cinco dos sete conselheiros titulares permanecem
em casa, por ordem judicial. O ex-presidente da instituição, José Júlio de Miranda
Coelho, além de ser apontado pelo Ministério Público Federal como um dos
responsáveis por desvios milionários dos cofres do próprio tribunal, também foi
flagrado em conversas telefônicas nas quais negocia com uma mulher encontros
sexuais com a filha dela, de 14 anos.
No Mato
Grosso, o conselheiro Humberto Melo Bosaipo foi afastado do cargo por decisão
judicial. Ele responde a pelo menos oito ações penais no Superior Tribunal de
Justiça (STJ) por peculato e lavagem de dinheiro. Um outro membro do tribunal,
o conselheiro Sérgio Ricardo de Almeida, é acusado de comprar a vaga de outro
colega, pagando R$ 4 milhões por isso. Ele nega.
Também em
Alagoas, a vice-presidente do TCE, Rosa Maria Ribeiro de Albuquerque, é irmã do
vice-presidente da Assembleia Legislativa, Antonio Albuquerque (PTdoB). O
Ministério Público aponta o deputado como o chefe da organização criminosa que
teria desviado recursos públicos da assembleia. Rosa Maria trabalhou com o
irmão, que também empregou outros parentes na Casa, e por pouco não foi
beneficiada por um ato dele. O deputado tentou tornar definitivas as nomeações
dos parentes, inclusive de Rosa Maria, que se tornariam funcionários efetivos
sem concurso público, mas uma ação do Ministério Público impediu a manobra.
Os
conselheiros vivem num mundo onde podem dizer o que é certo e o que é errado na
ação de terceiros. Não raras vezes, menosprezam os trabalhos realizados por
técnicos, que apontam superfaturamento de preços ou outras irregularidades, e
acabam decidindo politicamente. Embora não tenham o poder de condenar ninguém —
a palavra final sobre a rejeição de contas é sempre do Legislativo —, eles
equiparam-se a magistrados, sendo beneficiados pela Lei da Magistratura.
A
transparência, que deveria ser regra básica nos sites dessas instituições, na
verdade é exceção. Em São Paulo, por exemplo, nem mesmo o currículo dos
conselheiros se pode consultar. No Rio, não é possível consultar a folha de
pagamento nominal para saber quanto cada um recebe. No Tocantins, os relatórios
anuais sobre a vida financeira do TCE pararam em 2011. Em Alagoas, se o cidadão
quiser saber dos gastos com diárias dos membros do tribunal de contas, terá de
recorrer à Assembleia Legislativa.
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