Acabou a era de dar a ditadores exílio dourado em lindas praias
Promotor do TPI pede que Brasil priorize fim da impunidade em sua agenda
LUCAS FERRAZDE BRASÍLIA
Promotor-chefe do Tribunal Penal Internacional (TPI), o argentino Luis Moreno-Ocampo, 59, diz que o Brasil deveria priorizar em sua agenda a defesa do fim da impunidade.
"Quando se discutiu o problema de Darfur [oeste do Sudão e palco da ação de rebeldes] em 2005, o país teve uma posição muito dura de que havia que se evitar a impunidade de seus crimes. Esse tipo de coisa faz falta ao legado do país. Seria muito importante que na política brasileira se incluísse esse tema como uma coisa prioritária."
Há nove anos como promotor-chefe do TPI, cargo que vai deixar em junho, Ocampo diz que há uma "massa crítica" em formação na África contra as atrocidades que assolaram o continente nos últimos anos.
Ele ressalta que o "conceito de impunidade está acabando", referindo-se à histórica condenação na semana passada de Charles Taylor, ex-presidente da Libéria, pela matança na guerra civil de Serra Leoa. "Acabou a ideia de dar aos líderes [que cometeram crimes políticos] um exílio dourado nas lindas praias da costa sul francesa."
A seguir, a entrevista que concedeu à Folha, por telefone, da sede do TPI, em Haia, na Holanda.
Luis Moreno-Ocampo - A questão não é o número de condenados. A corte seria perfeita se não tivesse nenhum julgamento, se não houvesse mais genocídios. A responsabilidade primária é das cortes nacionais. Se elas atuam, a corte internacional não deve atuar. Seria perfeito se a corte internacional não precisasse intervir. O número de condenações e julgamentos não é relevante para analisar a corte, o relevante é como o mundo avança, como previne crimes e os castiga.
Mas Nuremberg [corte que julgou nazistas] ocorreu há quase 70 anos. Desde então, o mundo viu vários genocídios.
É algo novo. Nuremberg foi a primeira vez na historia que o juízo penal não foi feito por um país, mas por uma corte internacional. Lá se formou um conceito de crimes que afetam toda a comunidade internacional, e essa ideia se desenvolveu nos anos 1990, após a Guerra Fria, com os crimes na Iugoslávia, em Ruanda, Serra Leoa e Camboja.
Agora exige-se justiça na Síria, antes isso não acontecia. Mas na Síria não há acordo para se fazer justiça, e isso mostra como o cenário da Justiça internacional ainda é complicado.
A União Africana disse que há uma perseguição do TPI contra os líderes da região. Mas parece óbvio, pelos conflitos que estouraram na África, que lá seja o lugar onde mais se necessita da atuação de uma corte internacional, não?
Na América Latina e na Europa há uma espécie de massa crítica que não aceita crimes massivos, inclusive nos governos.
Quando houve o conflito entre Colômbia e Equador, todos os países da região entraram em cena para evitar algo pior. Essa massa crítica está aparecendo também na África. Trinta e quatro países do continente são membros da corte.
Mas ao mesmo tempo há dirigentes e líderes políticos que têm medo de serem processados. Isso gera uma resistência permanente, uma tensão entre países que querem mudar e outros que acham que podem governar exterminando pessoas.
Alguns países africanos usaram fóruns internacionais para atingir a corte, como Gaddafi. Ele fazia isso porque governava por meio do terror, a corte era um inimigo potencial.
Alguns países não reconhecem a jurisdição da corte, como China e Índia.
China, Índia e EUA...
Esses países tentam enfraquecer a atuação do tribunal?
Não, os países têm direito a não se filiar, não dá para tomar isso como um ataque. No caso de Gaddafi, o Conselho de Segurança da ONU aprovou uma investigação com apoio da Rússia, China, EUA e Índia. Todos esses países não são membros da corte, mas estão de acordo com seu trabalho. Isso está evoluindo.
Por que o tribunal não promove ações no Brasil pelos crimes cometidos na ditadura?
A corte começa em julho de 2002, os crimes cometidos antes dessa data não podem ser julgados. Na maioria dos países da América Latina, os crimes ocorreram nos anos 1970 e princípio dos 1980, por isso não temos jurisdição.
O Brasil foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA por não julgar os crimes da ditadura, e ainda não cumpriu a sentença. Uma Lei da Anistia proíbe julgar quem cometeu delitos. Em que medida uma corte internacional pode influenciar a Justiça nacional?
Há um consenso hoje de que é necessário investigar os delitos.
Mas há países como Uruguai e Brasil que decidiram não fazê-lo. É um debate importante, e está claro que qualquer crime cometido no futuro será investigado. Há um fenômeno novo, acabou a ideia de dar aos líderes [que cometeram crimes políticos] um exílio dourado nas lindas praias da costa sul francesa. As coisas mudaram muito em 20 anos, o conceito de impunidade está acabando.
Mas no Uruguai, onde também há uma Lei da Anistia em vigor, a Suprema Corte autorizou que alguns militares fossem processados. No Brasil essa tentativa não prospera.
Cada país tem um modelo e seu próprio processo. Mais do que olhar para o passado do Brasil, é importante ter foco no presente do país, uma potência mundial. O Brasil pode dar uma força distinta, o país teve um esforço muito grande na questão do Irã, com um papel importante.
Apurar os crimes do passado tem relação na consolidação dessa boa imagem internacional do país?
Países que promoveram ações para julgar seu passado de violência política têm menos tortura em casos normais. Há estudos sérios que mostram isso. Argentina e Chile, que julgaram os crimes de suas ditaduras, têm menos problemas com a tortura que os países que não fizeram. Esse não é um tema do passado, é um tema do presente, do futuro.
Me lembro quando se discutiu o problema de Darfur em 2005, no Conselho de Segurança da ONU, o Brasil teve uma posição muito dura de que havia que se evitar a impunidade desses crimes.
Esse tipo de coisa faz falta ao legado do país. Seria muito importante que na política brasileira se incluísse esse tema como uma coisa prioritária.
A Comissão da Verdade deve começar nos próximos meses. Mesmo sem poder punir judicialmente quem cometeu crimes, uma comissão nesse modelo é eficaz?
Se eu tivesse um filho desaparecido, iria querer saber o que aconteceu com ele. Para todas as famílias é muito importante o conhecimento da verdade. Tudo tem um papel importante.