sábado, 31 de agosto de 2013

Degeneração da arena política

O Estado de S. Paulo, 31 de agosto de 2013.

Ideias e mundo real

31 de agosto de 2013 | 2h 11

LUIZ SÉRGIO HENRIQUES - O Estado de S.Paulo
 
A relação entre ideias e mundo real não costuma ser unívoca nem se prestar a simplificações. Desajustes entre o que os homens efetivamente fazem, o que dizem sobre si e sobre a ação que empreendem constituem situação ineliminável da vida política. Não são, pois, traço característico da direita ou da esquerda, algo que se aplique com exclusividade a esta ou àquela entre as frações que ocupam o leque das opções disponíveis em cada circunstância.
Caso clássico, nesse sentido, e que atingiu em cheio a trajetória da esquerda foi o que se deu, a partir de 1917, com a justificação leninista e, depois, stalinista dos acontecimentos russos. Como se sabe, para o fundador do Estado soviético, o comunismo poderia ser sintetizado numa fórmula que reuniria sovietes e eletricidade. Por uma dessas duras réplicas da História, a ideologia marxista-leninista, que seria a codificação do bolchevismo no poder, logo recobriria, velando mais do que esclarecendo, uma realidade em que os sovietes (a democracia direta) se atrofiariam rapidamente e a eletrificação (a modernização) se daria "pelo alto", num período curtíssimo de tempo e com brutal custo humano, encarnado na coletivização do campo e na tragédia do stalinismo.
O século 19 brasileiro é outro exemplo evidente de que o mundo ideal e o dos fatos se articulam de modo pouco ortodoxo. A explicação que daquele século nos deu Florestan Fernandes apreende, com sagacidade, os caminhos de uma "revolução encapuçada" que, escorada pelo elemento dinâmico do liberalismo político, minaria os fundamentos da ordem senhorial, preparando - é verdade que ao longo de décadas, que viram a insólita associação de liberalismo e escravidão - o surgimento da modernidade capitalista.
Uma hipótese a ser examinada para entender o período iniciado com a Constituição de 1988 é que, uma vez mais, estaríamos lidando com alguma inédita ou pouco comum ironia da História. O grande e heterogêneo conjunto de ideias e práticas que se associa à social-democracia será talvez o que mais apropriadamente descreve a "ideologia" da nossa Carta, com seus novos mecanismos de criação de direitos a partir do reconhecimento jurídico de interesses legítimos de todos os setores sociais, especialmente dos subalternos. E, no entanto, as correntes políticas próximas daquele ideário se dividiriam em facções crescentemente irreconciliáveis, cuja conflituosidade por vezes espanta o observador desatento aos movimentos mais profundos que orientam o comportamento de atores individuais e coletivos, bem como a relação entre cultura e política.
Num exame menos superficial, tucanos e petistas de modo algum são inteiramente idênticos por origem ou orientação de valor, mas as diferenças que exibem e até exasperam não autorizam colocá-los em compartimentos antagônicos nem sequer muito distintos, ao contrário do que possam sugerir os tons da refrega a que se entregam. Os governos Fernando Henrique e Lula registraram avanços sociais dignos de nota, em razoável grau de continuidade, como atestam sucessivas avaliações, a mais recente das quais insuspeito índice de desenvolvimento humano referido à totalidade dos municípios brasileiros. Nenhuma revolução social, naturalmente, mas um interessante progresso relativamente espalhado pelo território, cujas consolidação e ampliação podem recolher considerável nível de consenso e gerar mobilização ainda maior de recursos, reduzindo a pobreza e também a desigualdade, numa "revolução encapuçada" mais ambiciosa, a ser conduzida estritamente dentro dos parâmetros constitucionais.
Os dois atores, dizíamos, não são idênticos: uns, mais atentos à dimensão institucional da democracia representativa, apesar da ferida representada pela malfadada emenda da reeleição em benefício dos então ocupantes do poder; outros, mais cuidadosos com as urgências sociais, ainda que o desleixo com os aspectos "formais" da democracia - aspectos "burgueses", dir-se-ia na velha cultura bolchevique - os tenha feito incorrer não em episódio "comum" de corrupção, explicável pela generalizada força do dinheiro na política contemporânea, mas sim num ataque frontal ao Parlamento, como aquele sobre o qual o Supremo Tribunal Federal ora se debruça novamente.
Difícil imaginar Fernando Henrique, não obstante a manobra da reeleição, nas vestes de caudilho: para tanto lhe falta, inclusive, o physique du rôle. Preocupante observar na variante social-democrata rival, não obstante a recusa do terceiro mandato, uma proximidade pelo menos ideal com a presente vaga dos presidentes latino-americanos que se querem "eternos": um sinal de que esta variante se terá modernizado de modo insuficiente, podendo condescender, se as condições o permitirem, com velhas taras autoritárias que assolam a tradição e não são atributo exclusivo dos "reacionários".
Se esta chave de leitura for minimamente correta, isto é, se estivermos assistindo ao confronto desabrido entre duas vertentes da mesma social-democracia, é o caso de temer pela qualidade das instituições, que constituem o bem mais precioso herdado das lutas contra o regime autoritário. Não custa fazer outro paralelo com a História trágica do século 20 e lembrar que os bolcheviques - ramo radicalizado do grande tronco socialista - em certo momento se lançaram contra os "social-fascistas" - os social-democratas clássicos -, facilitando a emergência do nazismo, o mal absoluto por definição.
Estamos muito longe desse cenário de pesadelo, mas bem podemos imaginar outras formas de degeneração do discurso e da arena política causadas pelo espírito de cruzada sem tréguas contra o adversário, considerado o inimigo a varrer em cada episódio eleitoral. Algumas dessas formas, infelizmente, já podem talvez ser entrevistas a olho nu.
LUIZ SÉRGIO HENRIQUES, TRADUTOR, ENSAÍSTA,  É UM DOS ORGANIZADORES DAS OBRAS DE GRAMSCI NO BRASIL. SITE: WWW.GRAMSCI.ORG

México e Brasil

[Similaridades com o Brasil]

Folha de S. Paulo, 31 de agosto de 2013.

México tem aversão a leis, diz ensaísta
Em novo livro, escritor e ex-chanceler Jorge Castañeda tenta entender por que modernidade nunca foi alcançada
Para ele, chamar o país de 'tigre asteca' é propaganda eficiente do governo, mas está distante da realidade
SYLVIA COLOMBO DE BUENOS AIRES Por que os mexicanos são ruins no futebol e não gostam de arranha-céus? Essa é uma das perguntas que o ensaísta e ex-chanceler do país Jorge Castañeda, 60, faz em "Amanhã para Sempre".
Determinado a investigar por que a modernidade nunca teria sido alcançada pelo México, ele vai às raízes das instituições republicanas e recorre a clássicos da interpretação nacional. Sua conclusão é de que há uma profunda contradição entre o mito fundador do país e a formação da sociedade.
Leia, abaixo, os principais trechos da entrevista, concedida à Folha por telefone.
Folha - Como abordar o tema da identidade mexicana após tantos autores clássicos, como Octavio Paz ("O Labirinto da Solidão) e Edmundo O'Gorman ("México, el Trauma de su História) já o terem feito?
Jorge Castañeda - O "leitmotiv" do livro foi tentar entender por que sempre temos a ideia de que o México almeja uma modernidade que nunca chega. Para responder, é necessário buscar as explicações sobre o caráter e a cultura histórica mexicana, que estão nesses autores. Porém, também há que se tentar entender por que ideias como o Estado de Direito não conseguem se disseminar aqui.
E qual sua explicação?
Há uma aversão cultural às leis. Obedecemos a leis que nos pareçam corretas. Do contrário, não. Uso no livro o exemplo da gripe A, que começou no México e se alastrou. Comparativamente, os Estados Unidos adotaram ações muito mais brandas para aplacar a praga, enquanto autoridades mexicanas foram extremamente rigorosas. No final, tivemos mais mortes. Só é possível entender isso se nos dermos conta de que as autoridades estavam corretas. Como o mexicano não obedece, o jeito é redobrar o controle.
Essas questões de ordem institucional estariam, então, acima dos aspectos culturais?
São elementos que agem conjuntamente. É preciso considerar ambos para entender a especificidade do caso mexicano em relação a países em que um processo parecido está ocorrendo. O surgimento de uma nova classe média tem determinado o rumo político de vários países, como Argentina, há algum tempo, o Brasil, o Uruguai e o Equador. A melhoria das condições materiais de vida têm dado força a determinados processos políticos que são parecidos: a continuidade do kirchnerismo e do PT, a Frente Ampla, a reeleição de Rafael Corrêa. O México vive o mesmo processo, mas sua peculiaridade só pode ser entendida se levarmos em consideração os aspectos que mencionei antes.
Quais os desafios do PRI de volta ao poder?
Tenho simpatia por Enrique Peña Nieto e por esse processo de nova alternância de poder (o PRI voltou ao poder após 12 anos de hegemonia do Partido da Aliança Nacional). Mas suas medidas têm sido ineficientes, porque são superficiais. O desafio é transformar o país levando em consideração o caráter nacional, que é constituído sobre uma contradição.
Pode dar um exemplo concreto?
No caso da reforma energética que quer fazer (abrir a petrolífera PeMex ao capital privado), Peña Nieto crê que o inimigo seja a oposição do PAN. Mas o principal fator de resistência é a ideia geral que os mexicanos têm de que o petróleo é um bem nacional, elemento essencial da identidade cultural mexicana.
O PRI é um obstáculo para a renovação da esquerda?
De fato, a esquerda mexicana é muito arcaica. O PRD é anacrônico. Nem mesmo o setor mais progressista da sociedade o vê como solução. Novamente, foi a formação dessa nova classe média que obrigou a esquerda nesses países a se redimensionar. Esse processo não aconteceu no México por conta de suas peculiaridades culturais.
A relação com os EUA mudou?
Politicamente, desde os anos 70, todos os presidentes têm nos EUA as principais atenções. Isso não mudou. Mas hoje, a exportação de petróleo é minoritária. Por outro lado, nos transformamos, como nenhum outro país latino-americano, num exportador de mão de obra. E o turismo transformou-se em assunto estratégico, tamanha é sua importância econômica.
A mídia internacional trata o México como "tigre asteca", por conta do bons números na economia. Você concorda?
Não. Acho que isso é uma estratégia de propaganda muito eficiente do governo, mas que não tem a ver com a situação real. É certo que o PIB vem crescendo de maneira significativa (4% ao ano) e que melhoraram o intercâmbio industrial e comercial com os EUA. Mas o país é o mesmo, com sérios problemas sociais, uma guerra civil que não tem fim e números econômicos não tão positivos em várias áreas.
A lei da maconha do Uruguai funcionaria no México?
Creio que a lei deveria ser trazida ao México. Setores políticos do país já discutem isso. É inegável que as políticas proibitórias não tiveram efeito.

"Controle político" sobre as investigações da PF

Folha de S. Paulo, 31 de agosto de 2013.

Policiais federais veem controle político sobre suas investigações
Atual gestão da PF é 'péssima' para a maioria dos entrevistados
DE BRASÍLIA
 
As investigações da Polícia Federal são alvo de "controle político" na opinião de 89% dos policiais federais que participaram de uma pesquisa da Federação Nacional dos Policiais Federais, divulgada ontem. Apenas 11% dos entrevistados disseram não haver esse controle.
Questionados se "no ambiente de trabalho, já presenciou ou ouviu algum relato sobre interferências no trabalho investigativo feito pelos policiais federais", 75% dos entrevistados disseram que sim, e 25% disseram que não.
Para 94%, a "falta de investimento nos últimos anos na PF" é "um castigo pelas investigações sobre corrupção".
O trabalho do atual diretor-geral da PF, Leandro Daiello Coimbra, nomeado pela presidente Dilma Rousseff em 2011, foi duramente avaliado pelos entrevistados.
Nada menos que 69% dos entrevistados disseram que sua gestão é péssima e outros 21,8% afirmaram que ela é ruim. Apenas 0,9% disseram que ela é boa e 0,06% a consideraram ótima.
Foram consultados 1.732 policiais, entre agentes, escrivães e papiloscopistas (peritos em impressões digitais) --a pesquisa não incluiu delegados. A margem de erro é de dois pontos percentuais.
A direção-geral da PF não comentou o resultado da pesquisa até a conclusão desta edição.

Regras brasileiras

Folha de S. Paulo, 31 de agosto de 2013.

Ministro do STF afirma que não vai declarar suspeição
Toffoli é relator de processos envolvendo banco em que tomou empréstimos
Para integrantes e ex-membros da corte, não há impedimento se financiamento ocorreu em 'padrões usuais'
DE BRASÍLIA O ministro do Supremo Tribunal Federal Dias Toffoli disse ontem que não vai declarar sua suspeição e deixar a relatoria dos processos envolvendo o Banco Mercantil do Brasil, instituição que lhe concedeu empréstimos pessoais de R$ 1,4 milhão.
"Não vou me declarar suspeito, não há elementos para isso. E as pessoas formem seu juízo após o julgamento [das ações]", disse.
Em 2011, Toffoli obteve dois empréstimos no Mercantil, um para ser pago em 180 parcelas e outro em 204 prestações. Meses depois, ele renegociou os empréstimos e conseguiu reduzir os juros de 1,35% para 1% ao mês, o que lhe garantiu economia de R$ 636 mil no total a ser pago. As informações foram reveladas pelo jornal "O Estado de S. Paulo" na quinta-feira.
Nos processos, Toffoli suspendeu uma ação em que o Mercantil pedia ressarcimento de valores supostamente pagos a mais ao INSS até que o julgamento de um caso semelhante fosse realizado. Com isso, a decisão tomada pela corte na matéria também será aplicada ao banco.
Noutro caso, em que o Mercantil pediu a revisão do aumento da alíquota da Cofins para bancos de 3% para 4%, o ministro sugeriu que ele fosse reconhecido como de "repercussão geral" --foi seguido pela maioria dos ministros. Dessa forma, o que for decidido para o Mercantil valerá também a outro banco que fizer pedido semelhante.
Ao tratar do impedimento de ministros, o regimento do STF se remete ao Código de Processo Civil. Nele, é dito que a suspeição de um magistrado pode ser pedida quando "alguma parte for credora ou devedora do juiz".
Ministros e ex-ministros ouvidos pela Folha disseram que o "espírito da lei" está ligado a situações entre pessoas físicas. A princípio, um juiz não precisaria se dar por suspeito por ter um empréstimo num banco desde que essa relação esteja dentro de "parâmetros usuais".
Como exemplo, o ex-presidente do STF Carlos Velloso disse que ele e outros ministros de sua gestão compraram imóveis com financiamento da Caixa Econômica Federal. Nenhum deles se deu por impedido ou suspeito para julgar ações da CEF.
No mensalão, o então procurador-geral Roberto Gurgel cogitou pedir suspeição contra o ministro, que foi advogado do PT e assessor de José Dirceu. Gurgel não formulou o questionamento, e Toffoli não se deu por impedido. No mensalão, o ministro votou para absolver Dirceu.

sexta-feira, 30 de agosto de 2013

Parabéns....


Robusta democracia...


Suicídio

Folha de S. Paulo, 30 de agosto de 2013.

Suicídio
30 Ago 2013

Eliane Cantanhêde


BRASÍLIA - Ninguém trata tão mal os políticos quanto os próprios políticos. Nem mesmo o mais ácido crítico teria tanta eficácia quanto Suas Excelências ao corroer a imagem de deputados, de senadores e, pior, do Congresso Nacional.
Há inúmeros adjetivos, além de expressões impublicáveis, para definir a decisão de quarta-feira à noite, absolvendo o presidiário Natan Donadon da cassação de mandato, mas um só basta: é inacreditável.
Os parlamentares que votaram a favor de Donadon, abstiveram-se ou ausentaram-se sem bons motivos deixam uma dúvida. Se eles são colegas de Donadon na corporação Congresso ou deveriam ser na corporação Papuda, onde o parlamentar-presidiário está preso, com uma condenação de mais de 13 anos por formação de quadrilha e desvio de dinheiro público, o popular roubo.
Para tentar contornar o clima de enterro da instituição, o presidente da Câmara, Henrique Eduardo Alves, saca uma solução heterodoxa e sem respaldo no regimento, declarando o afastamento de Donadon e a convocação de seu suplente, Amir Lando. Está criada a seguinte situação: Donadon não é deputado, mas é; Lando é deputado, mas não é.
E, numa tentativa patética de reduzir as labaredas na opinião pública, o presidente do Senado, Renan Calheiros, desfralda uma "saída célere" anunciando a votação da PEC 18, que determina a perda automática de mandato, sem votação do Legislativo, em caso de condenação por improbidade administrativa e crime contra a administração pública.
Ah! Todos, claro, berram pelos salões, corredores e comissões contra o instituto do voto secreto para a cassação de parlamentares. Quem quiser se igualar a condenados, que vote pelo menos às claras.
Agora, porém, tudo isso é secundário, porque Inês é morta e Donadon está bem vivo. Mas, se alguém acha que isso pode ajudar Genoino, João Paulo Cunha e Costa Neto, está muito enganado. Ou será que não?

Alves: "na ditadura....era o contrário disto"




Henrique Alves: ‘Com voto secreto, não coloco mais em votação nenhum pedido de cassação’

Josias de Souza


Do posto de presidente, Henrique vê cena inédita em seus 42 anos de Câmara: presidiário na tribuna
Frustrado com a decisão do plenário de preservar o mandato de Natan Donadon, deputado condenado e preso por formação de quadrilha, corrupção e peculato, o presidente da Câmara tomou uma decisão: “Enquanto eu for presidente, não colocarei mais em votação nenhum pedido de cassação sob o manto do voto secreto”, disse Henrique Eduardo Alves (PMDB-RN) em entrevista ao blog. “É uma maneira de eu pressionar a Casa, no bom sentido, para apreciarmos a PEC que institui o voto aberto.”
Significa dizer que, se o STF confirmar as condenações dos mensaleiros com mandato, os pedidos de cassação de José Genoino (PT-SP), João Paulo Cunha (PT-SP), Vademar Costa Neto (PR-SP) e Pedro Henry (PP-MT) só serão levados ao plenário depois que for revogado o voto secreto.
Consumado o vexame da noite passada, Henrique Alves apressou-se em declarar vaga a cadeira do deputado-presidiário. Em deliberação solitária, sujeita a questionamento judicial, anunciou a convocação do suplente de Donadon, o ex-senador e ex-ministro da Previdência Amir Lando (PMDB-RO). Vai abaixo a entrevista com o presidente da Câmara:
— Quando decidiu esticar a sessão até 23h, já suspeitava que o resultado poderia ser adverso? Havia um zunzunzum no plenário. Achei importante dar mais tempo para que os deputados viessem votar. Queria que o quórum fosse mais qualificado. Mas chegou uma hora que não tinha mais jeito. Quem não foi é porque não queria mesmo votar. Tive que tomar uma decisão solitária.
— Na sua decisão solitária, o sr. declarou vaga a cadeira de Donadon e convocou o suplente. Fez isso lendo um texto preparado com antecedência. Já antevia o resultado? Passei a considerar a hipótese quando começaram a chegar a mim deputados inquietos com o sentimento que recolhiam do plenário.
— Redigiu a decisão mais cedo? Não. Foi no momento. Na hora que comecei a verificar a inquietação de alguns deputados, senti que precisava encontrar uma saída para o Parlamento. Conversei com o Mozart [Vianna, secretário-geral da Mesa]. E tomei a decisão. Posso enfrentar incompreensões. Mas decidi assumir esse ônus pensando na Casa. Devo obediência à decisão do plenário. Mas ele [Donadon] não vai ficar na prisão exercendo o mandato de deputado. Ele poderia, daqui a pouco, pedir a um juiz para comparecer à Câmara uma vez por semana. Imagine o constrangimento! Convoquei o suplente pensando no Parlamento.
— Quando assume o suplente? Já declarei a vacância do cargo, e convoquei o suplente [o ex-senador e ex-ministro Amir Lando]. Liguei pra ele. Assume nesta quinta-feira, às 15h. Na prática, o Donadon não vai exercer o mandato. Está preso. A Câmara não ficará com um deputado a menos nem Rondônia ficará sem um representante. É o que eu tinha que fazer.
— A Câmara já havia interrompido o pagamento dos salários do deputado Donadon e da assessoria dele. Tenta retomar o apartamento funcional. Esses procedimentos serão mantidos? Sim, ele permanece na situação que estava. Preso, não estará exercendo o mandato. Não há razão para ter gabinete nem funcionários. Vou manter as decisões anteriores pela simples razão de que ele não estará no exercício do mandato.
— Não receia que a Mesa diretora da Câmara desautorize sua decisão solitária? Não. O que pode acontecer é o Donadon entrar com mandado de segurança. Mas não posso pensar nisso. Tive que assumir a responsabilidade. Penso em telefonar para o presidente do Supremo [Joaquim Barbosa] para fazer um apelo. Na hipótese de haver um mandado de segurança, gostaria muito que fosse preservada a decisão que tomei como presidente da Câmara.
— Durante a votação do pedido de cassação, vários deputados sustentaram a tese segundo a qual caberia à Mesa da Câmara afastar o deputado condenado no STF. Por que o plenário foi transformado em instância revisora do STF? Não há respaldo legal para que a Mesa substitua o plenário nessa matéria. Seguimos o artigo 55, paragrago 6º da Constituição. Quando há condenação penal transitada em julgado, a decisão sobre o mandato cabe à Câmara. Tanto que alguns deputaos estão cogitando propor uma PEC [proposta de emenda à Constituição] para alterar isso. O próprio Supremo mudou seu entendimento sobre essa matéria.
— Como assim? Antes, havia no Supremo maioria a favor do entendimento de que o tribunal poderia decretar a perda do mandato de condenados. Agora, com a mudança de composição do plenário do tribunal, formou-se maioria de 6 a 4 no sentido de que a decisão sobre os mandatos é da Câmara. Aplica-se, então, o texto Constitucional naquilo que está previsto no artigo 55, paragrago 6º.
— No caso do mensalão, dependendo do resultado do julgamento dos recursos, a Câmara pode ter que deliberar sobre os mandatos de mais quatro condenados. Não receia que o resultado se repita nesses casos? Precisamos aguardar o término do julgamento. É preciso esperar pela apreciação de todos os embargos. Mas seja qual for o resultado, já tomei uma decisão: enquanto eu for presidente, não colocarei mais em votação nenhum pedido de cassação sob o voto secreto. Não há hipótese. Há em tramitação uma PEC que institui o voto aberto para esses casos. Já constituímos uma comissão especial para tratar do assunto.
— Por que essa comissão não anda? Alguns parlamentares não estão comparecendo para dar quórum. Mas eu vou acompanhar isso todo dia para ver se as coisas acontecem. Minha decisão está tomada: não colocarei em votação nenhum projeto de cassação sob o manto do voto secreto. Eu, como presidente, não farei mais isso. Com voto secreto, eu não coloco mais em votação nenhum pedido de cassação de mandato. É uma maneira de eu pressionar a Casa, no bom sentido, para apreciarmos a PEC que institui o voto aberto.
— A aprovação dessa proposta já não havia sido acertada? Você tem razão. Quando assumi a presidência da República interinamente, em junho, recebi no Palácio do Planalto todos os líderes partidários, inclusive os da oposição. Acertamos que esse assunto deveria ser posto em pauta. O acordo foi confirmado depois na reunião de líderes na Câmara. Decidimos que o fim do voto secreto para a cassação de mandatos seria votada. Todos concordaram. Selecionamos uma emenda do senador Alvaro Dias [PSDB-PR], já aprovada no Senado. Depois disso, vários partidos não indicaram seus representantes na comissão especial criada para tratar do tema. Dei um prazo. Não fizeram as indicações. Há uns 15 dias, eu indiquei os líderes e os vice-líderes. Agora, a comissão não vem tendo quórum para deliberar. Minha decisão de não mais colocar em votação pedidos de cassação é para estimular a comissão a deliberar sobre a PEC do voto aberto. É preciso que cada um assuma suas responsabilidades.
— Com 42 anos de mandato, já tinha visto coisa como um presidiário discursando da tribuna e o plenário salvando-lhe o mandato? Não. Foi um  episódio inusitado. Na época da ditadura, víamos deputados resistindo em plenário contra cassações arbitrárias. Era o contrário disso. Mas minha frustração não foi só pelo resultado. Lamentei também o quórum. Cada deputado tem o direito de votar como bem entende. Eu, como presidente da Casa, tenho que respeitar. Mas me frustrou o quórum. Havia na Casa 470 deputados. Como é que só 405 registraram o voto no painel? Esperava que todos fossem lá para dizer sim ou não. Pela importância da votação, a Casa tinha que mostrar sua posição. A ausência acentuada também é frustrante. Sobretudo porque o número de votos a favor da cassação foi o dobro da quantidade de votos contrários. Faltaram 24 votos. É frustrante.
— Acha que o prejuízo junto à opinião pública será grande? Não tenho dúvida de que haverá prejuízo. O que é uma pena. A Casa vinha se recuperando, assumindo várias posições muito positivas. De repente, vem essa decisão na contramão.

quinta-feira, 29 de agosto de 2013

Situaçao política pré-revolução de 30?



Um espectro ronda a América Latina
29 Ago 2013

 

Por César Felício


Eram centenas de pessoas, de setecentas a oitocentas. Se concentraram em frente à Faculdade de Direito. Tudo começou pacificamente e a marcha se direcionou ao coração financeiro, comercial e turístico da cidade. Em determinado instante, um grupo de manifestantes mascarados começou a puxar um coro próprio. Usavam mochilas e roupas negras. Sacaram aerossois e começaram a pichar de amarelo as portas fechadas do comércio e agências de bancos. Foi a hora que a polícia começou a atuar e o grupo se dispersou. Cerca de vinte manifestantes entraram em uma rua lateral e se dividiram em grupos de cinco. Nas mochilas, carregavam pedras, paus, máscaras antigases, aerossóis de tinta. Destruíram um caixa automático e quebraram os vidros de uma igreja. Os manifestantes identificam-se politicamente como simpáticos ao anarquismo.
A cena toda é familiar aos brasileiros, mas não aconteceu em junho e nem no Brasil. A descrição faz parte de um inquérito penal aberto em Montevidéu, contra dois anarquistas presos na ocasião. A policia uruguaia estava infiltrada entre os manifestantes que ocuparam a avenida 18 de Julho há duas semanas e produziu o relato, manchete da terça-feira do jornal uruguaio "El Día". Foi a segunda manifestação violenta na capital uruguaia em menos de um mês. No dia 25, em um ato contra mineradoras, também houve enfrentamento com a polícia. Nenhum dos anarquistas detidos era uruguaio: um era argentino e o outro, peruano.
Deve-se buscar dentro do Brasil as razões que explicam a revolta de junho. Mas há um padrão que não começou com o aumento da tarifa de ônibus em São Paulo e não termina com a confusão na 18 de Julho. "Até a década passada, o padrão na América Latina era de radicalização moderada, com três fontes básicas de origem dos conflitos: trabalhista, ambiental e de moradores. O demandado sempre era o Estado. O modelo hoje é outro", disse o sociólogo de origem boliviana Fernando Calderón, da Universidade de San Martín, na Argentina, e consultor de um centro de pesquisas do PNUD que monitora os conflitos sociais na América Latina.

Mudou o padrão de demandas no continente
Em relação às manifestações da segunda década do século passado, os únicos traços que unem quem está nas ruas são a juventude, o uso das redes sociais como catalisador e o Estado que permanece sendo o alvo. Não há predomínio de classe social ou fronteira ideológica. Não há como catalogar os protestos por demandas.
Calderón marca as manifestações estudantis que sacudiram o Chile, em 2011, como o início da nova onda. Este ano disputam-se eleições no país e, como aconteceu em todas as eleições desde a redemocratização do país, a polarização será entre a frente de centro-esquerda de socialistas, democratas-cristãos e comunistas, de um lado, e a direita que se identifica com a política econômica de Pinochet, do outro. "Mas é falso pensar que os protestos no Chile foram inconsequentes. Eles pautaram a agenda das duas frentes. A educação está no centro do debate público lá", afirmou.
O traço distintivo do Brasil, segundo a visão distante de Calderón, é o componente político que serviu de combustível aos protestos. " É interessante como no Brasil predomina uma crítica moral e uma demanda ética nas manifestações. Mais do que em qualquer outro país, no Brasil há uma desconfiança do sistema institucional e um baixo apreço à democracia representativa", disse.
É de uma constatação como essa que o pesquisador do Cebrap e da Unicamp Marcos Nobre partiu em seu trabalho " Choque de Democracia-Razões da Revolta", ensaio transformado em "e-book" pela Companhia das Letras, apresentado por ele em um debate na Flip, o festival cultural de Paraty. Na visão dele, a chave para a crise política brasileira está no que chama de "blindagem" de Congresso e governos estaduais. "Ruiu a certeza de que a melhoria das condições de vida é suficiente para garantir apoio político, de que a situação econômica determina completamente a decisão política", escreveu Nobre.
Para o filósofo, desde a época da Constituinte, nos anos 80, se desenhava uma frente congressual para brecar a pressão das ruas dentro das instituições políticas. O chamado "Centrão", em sua opinião, foi o primeiro ensaio. O sistema ganhou um outro patamar durante o governo Fernando Henrique e atingiu seu ápice após a reeleição de Lula em 2006, quando se consolidou a aliança entre o PT e o PMDB. Com o patrocínio do Palácio do Planalto, o sistema atingiu a blindagem total, em que a oposição em termos práticos inexiste e as polarizações na sociedade deixam de se refletir nas instituições da democracia representativa, como o Congresso. Em termos econômicos, as duas últimas décadas foram marcadas pela inclusão. Na esfera política, o Brasil estaria em uma situação análoga a do início do século 20, pré-revolução de 1930.
Em um sistema político assim fechado como o descrito por Nobre, monta-se um circuito de dominação: O Executivo se nutre do apoio de oligarcas regionais e congressuais, com quem precisa barganhar de tempos em tempos, e o retribui bancando seus apoiadores em momentos em que estes estão fragilizados. Depois do vendaval de junho, começa a ficar claro para onde o pêndulo do poder se inclinou.
Quando estourou a crise, o primeiro movimento de Dilma foi tentar direcionar a pressão para o Legislativo, com a fracassada sugestão de um plebiscito para uma reforma política que aumentaria o controle das bases pelas cúpulas partidárias. O troco já está vindo, como prova a votação na Câmara desta terça-feira, que aprovou em segundo turno a proposta que torna o Orçamento impositivo para emendas parlamentares. No dia 7 de setembro, uma nova onda de protestos deve se armar no horizonte brasileiro. É possível que a fatura se torne mais alta.
César Felício é correspondente em Buenos Aires. Escreve mensalmente às quintas-feiras

Até quando é possível brincar com fogo?

[o pacto social já foi rompido e estamos caminhando rumo ao rompimento do pacto institucional?]
 
 
Barroso elogia Genoino, mas não altera condenação de deputado
 
   
29 Ago 2013

"Lamento condenar um homem que participou da resistência", disse

Reforma. Barroso pediu mudanças no sistema político, para ele, perverso

BRASÍLIA


Embora derrotado no julgamento dos embargos de declaração, o ex-presidente do PT José Genoino ganhou do mais novo integrante do STF, Roberto Barroso, um discurso lamentando sua condenação. Em plenário, Barroso ressaltou o papel de Genoino na luta contra a Ditadura e declarou que o réu não enriqueceu com a vida pública. Barroso voltou a defender a reforma política, ponderando que o sistema atual favorece a corrupção e inibe boas práticas.
Mas Barroso não quis mudar a pena aplicada ao petista em seu voto. Para ele, não há espaço para viradas em julgamento de embargos de declaração.
- Pessoalmente, lamento condenar um homem que participou da resistência à Ditadura no Brasil, em um tempo em que isso exigia abnegação e envolvia muitos riscos. Lamento condenar alguém que participou da reconstrução democrática do país. Lamento, sobretudo, condenar um homem que, segundo todas as fontes confiáveis, leva uma vida modesta e jamais lucrou financeiramente com a política - disse Barroso.
O ministro tomou posse em junho e não participou do julgamento do mensalão em 2012.
No início da análise dos recursos do mensalão, Barroso defendeu a reforma política para evitar a corrupção na administração pública. Ontem, voltou a criticar o sistema, incluindo os altos custos das campanhas:
- Temos um sistema político distorcido e perverso, indutor da criminalidade. De um lado, há parlamentares eleitos em campanhas de custos estratosféricos, que transformam o Parlamento em um balcão de negócios. De outro lado, condenados por corrupção ativa, líderes do governo querendo implementar a sua agenda política e comprando aquilo que consideravam o interesse público.
Para o ministro, se o sistema eleitoral e partidário não for alterado, a "lógica de compra e venda" tende a ser perpetuada no poder público:
- O papel do processo civilizatório é o de reprimir o que há de ruim e potencializar o que há de bom. O sistema político brasileiro faz exatamente o contrário: reprime o bem e potencializa o mal

Nova jaboticaba brasileira

[Defendi que o Congresso deveria de auto-dissolver e que novas eleições fossem realizadas. Isto poderia evitar este tipo de vexame]

http://josiasdesouza.blogosfera.uol.com.br/2013/08/28/em-vez-de-sepultar-donadon-camara-se-mata/

Em vez de sepultar Donadon, Câmara se mata

Josias de Souza
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— Na hora de vir pra cá, eu fui tomar banho. E faltou água na torneira. Lá não tem chuveiro. É uma torneira. Água fria. E justamente hoje faltou água.
Plenário da Câmara, noite do dia 28 de agosto de 2013. O clima era de velório. Na tribuna, Natan Donadon, um cadáver político, pronunciava suas penúltimas palavras.
— Eu tava todo ensaboado. E acabou a água do presídio. Eu tive que recorrer a um preso, do lado da minha cela. Ele tinha umas garrafinhas de água. Pedi a ele. E acabei de tomar banho com essas poucas garrafinhas que ele me emprestou.
Em noite constrangedoramente deplorável, o plenário da Câmara perdeu a tradicional aparência de feira livre. Hipnotizados, os presentes dedicavam 100% de sua atenção a Donadon. Pela primeira vez na história do Legislativo, um presidiário ocupava a tribuna.
De todos os persistentes terrores brasileiros, o pior é o terror do sistema prisional. O flagelo é a síntese do que o pedaço bem nascido do Brasil pensa dos sem-berço. As cadeias são infernais porque elas só são infernais para bandidos pretos e pobres. Não é lugar para brasileiros acima de um certo nível de renda e de poder.
De repetente, o STF condenou Donadon a mais de 13 anos de cana dura. E ele foi transferido do mundo das facilidades e dos privilégios para a Penitenciária da Papuda, em Brasília. “Os companheiros de prisão chamam de ‘P-Zero’, prisão zero, porque não tem nada”, disse, ao relatar seus primeiros dois meses de inferno.
— Vim algemado de lá pra cá. Nunca tinha entrado num camburão na minha vida. Nunca pensei que isso fosse acontecer. Vim algemado pelas mãos, atrás [didático, o orador leva as mãos às costas, juntando os punhos]. Eu tenho uma certa fobia. Pedi aos agentes pra me trazer na frente. Mas eles disseram que não poderia. Deus me acompanhou. Me deu força, me deu resignação.
O plenário estava reunido para parafusar a tampa do caixão que o Supremo fechara, decretando a cassação do mandato do preso. E Donadon, munido de autorização judicial, revirava no caixão. Nas entrelinhas do seu discurso, o condenado passava aos seus pares, por assim dizer, um recado. Era como se dissesse: “Eu sou vocês amanhã.” Soou dramático.
— Esses 60 dias que eu estou preso lá, tenho sofrido muito. Tenho sofrido muuiiiito. É desumano o que um prisioneiro passa. A minha família tem sofrido muito. Por favor, me absolvam. Essa Casa é independente!
Sentenciado em última instância, sem possibilidade de recorrer, Donadon revelou-se um presidiário de mostruário. Como todo detento que se preza, declarou-se “inocente”. Terminado o discurso, abriu-se o painel de votação. E o plenário começou a esvaziar.
Muitos deputados, cumprida a obrigação de votar, foram embora. Outros tantos bateram em retirada sem votar. Dos 513 deputados, 470 registraram presença ao longo do dia. Desse total, apenas 405 levaram o voto ao plenário. Como que farejando o cheiro de queimado, Henrique Eduardo Alves (PMDB-RN), presidente da Câmara, esticou a sessão a mais não poder. Queria que todos votassem.
Iniciada às 19h, a sessão foi encerrada às 23h04. Para que o mandato do condenado Donadon fosse passado na lâmina, eram necessários pelo menos 257 votos. “A Câmara não vai cometer hara-kiri político”, disse um otimista Chico Alencar (PSOL-RJ), antes que o resultado fosse estampado no painel eletrônico: “sim”, 233; “não”, 131. “Abstenção”, 41. A Câmara, que sempre teve um comportamento de alto risco, cometeu suicídio. Tornou-se uma instituição-zumbi. Numa tentativa de reduzir os danos, Henrique Alves anunciou que Donadon não terá de volta o salário e demais benefícios. Será convocado o suplente.
Sacramentado o vexame, o ainda deputado federal Natan Donadon levantou as mãos para o alto. Atrás da última fileira de poltronas, festejou a morte do plenário como uma vitória do corporativismo. Depois, foi reconduzido ao camburão. Algemado, voltou para o xilindró. Antes, foi ao microfone de apartes para cumprir um compromisso que assumira com seus companheiros de cárcere.
— Eles falaram pra mim assim: ‘nao esqueça de falar da nossa alimentação. É muito ruim a alimentação do presídio. Não é de boa qualidade. Tenho a síndrome do intestine irritado. Associado ao estresse, tenho passado muito dificuldade lá. Tá dado o recado. Eles pediram pra eu falar. É preciso melhorar a comida dos presidiários da Papuda.
O Brasil dispõe de mais uma jabuticaba: um deputado federal corrupto e presidiário. É coisa única no mundo. “Graças a Deus, a Câmara está fazendo justiça”, disse a anomalia, a caminho do camburão.

quarta-feira, 28 de agosto de 2013

Resíduo autoritário

O Estado de S. Paulo, 28 de agosto de 2013.

Resíduo autoritário

28 de agosto de 2013 | 2h 05

Almir Pazzianotto Pinto * - O Estado de S.Paulo
 
A presidente Dilma pôs em pauta tema que se acha latente há anos: a reforma política. Reformas não nos têm faltado. A última ocorreu em 1988, com a promulgação da "Constituição Coragem", como a denominou o dr. Ulysses Guimarães, presidente da Assembleia Nacional Constituinte. Antes tivemos as Constituições de 1967, 1946, 1937, 1934, e 1891, para não falarmos na de 1824, que dom Pedro I, imperador constitucional, jurou e fez jurar como primeira lei orgânica nacional.
Em 191 anos de vida soberana, o Brasil experimentou sete radicais transformações na estrutura política, além de outras de menor porte, como a mudança do presidencialismo para o parlamentarismo, pela Emenda 4/1961 à Constituição de 1946, e o retorno ao presidencialismo um ano e quatro meses depois, com a Emenda 6/63.
Como parte interessada, proponho que a reforma política se inicie pela Lei 9.096/95, que trata dos partidos, com a extinção do Fundo Partidário. Partidos políticos, como empresas, fundações, associações civis e organizações religiosas, são pessoas jurídicas de direito privado, inconfundíveis com pessoas jurídicas de direito público. Temos 30 registrados no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e um pedido de registro em andamento. O Fundo Partidário é integrado por multas aplicadas pela Justiça Eleitoral, recursos financeiros que lhes forem destinados por lei, doações de pessoas físicas e jurídicas e dotações orçamentárias da União, "em valor nunca inferior, a cada ano, ao número de eleitores inscritos em 31 de dezembro do ano anterior ao da proposta orçamentária, multiplicados por trinta e cinco centavos de real, em valores de 1995" (artigo 38).
A Constituição atual assegura liberdade de fundação, fusão, incorporação e extinção de partidos, princípio do qual se valem políticos oportunistas e carreiristas para criar legendas artificiais mantidas pelo contribuinte.
Não bastasse o inesgotável Fundo Partidário, contam os partidos com acesso gratuito ao rádio e à televisão. Gratuito para eles, não para quem recolhe impostos, eis que as emissoras "terão direito à compensação fiscal pela cedência do horário gratuito previsto nesta Lei" (artigo 51, parágrafo único, da Lei 9.096/95). Em outras palavras, dinheiro arrecadado pelo governo, por meio, por exemplo, do Imposto de Renda, não reverterá em benefício dos contribuintes, pessoas físicas ou jurídicas; mas se destinará à remuneração de horários falsamente gratuitos, para que dirigentes partidários formulem promessas maçantes em que ninguém acredita. Os benefícios legais não cessam aí, pois ainda têm assegurado "o direito à utilização gratuita de escolas públicas ou Casas Legislativas para a realização das suas reuniões ou convenções" (artigo 51).
Diversos partidos são braços políticos de centrais sindicais e organizações religiosas. Centrais alimentadas com recursos do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) e contribuições pagas, compulsoriamente, por trabalhadores que se limitam a exercer o direito de não se sindicalizar.
A erradicação do Fundo Partidário e do horário dito gratuito de rádio e televisão exercerá papel saneador. Sobreviverão, com recursos próprios, unicamente agremiações que atraiam para as respectivas fileiras pessoas dispostas a sustentá-las com mensalidades, doações e serviços.
O fundo é produto do regime militar. Surgiu com a Lei n.º 4.740/1965, sancionada pelo presidente Castelo Branco, foi mantido pela Lei n.º 5.682/1971, do governo Médici, e se conserva na legislação vigente. Partidos fortes, como UDN, PSD, PTB, PDC, PL, PR, arbitrariamente extintos pelo Ato Institucional n.º 2/1965, jamais se alimentaram com recursos da União; eram fundados, instalados, mantidos, desenvolviam campanhas, estavam presentes nos Poderes Legislativos e Executivos, federais, estaduais e municipais, graças a dotações voluntárias de filiados e simpatizantes.
A presença de dinheiro público transformou o TSE numa espécie de grande organização contábil, com ramificações estaduais. Além de atividades jurisdicionais, a Justiça Eleitoral encontra-se compelida a exercer tarefas de auditoria, fiscalizando balanços, movimentações e aplicações financeiras, doações, e a manter conta especial no Banco do Brasil, onde serão depositados, mensalmente, os duodécimos devidos aos partidos pelo Tesouro.
Pessoas jurídicas de direito privado, aos partidos não se permite agirem como tal, padecendo restrições que resultam dos vínculos com a União por meio do Fundo Partidário. Os recursos dele provenientes têm destinação fixada pela lei (artigo 44), e se sujeitam à investigação da Justiça Eleitoral.
Quais os relevantes motivos que fazem do contribuinte financiador de campanhas de candidatos a presidente da República, governador de Estado, senador, deputado federal e estadual, prefeito e vereador, escolhidos pelas cúpulas ou autonomeados? Com o dinheiro dos impostos são sustentados partidos cujos representantes se revelam descomprometidos com a verdade, a retidão, a fidelidade e alimentadas campanhas arquitetadas por conhecidos, e bem remunerados, marqueteiros, cuja tarefa consiste em elaborar programas e imagens falsas. que se harmonizem com as esperanças do eleitorado.
Se o governo se sensibiliza pelas mensagens emitidas pelo povo nas ruas, pode começar as reformas revendo a Lei 9.096/95, que dispõe sobre partidos políticos. E na onda das reformas, que tal consultar a população, em plebiscito, sobre se está disposta a alimentar, com os impostos que religiosamente paga, o Fundo Partidário, sustentar o horário eleitoral obrigatório e financiar campanhas eleitorais?
Pergunta simples. Pode ser respondida com sim ou não.
*Almir Pazzianotto Pinto é advogado, foi ministro do Trabalho e presidente do Supremo Tribunal do Trabalho.

Brasil desrepeita o instituto do asilo político

Folha de S. Paulo, 28 de agosto de 2013.

Elio Gaspari 

Uma diplomacia estudantil
O Itamaraty é coisa séria, mas, com suas trapalhadas, o comissariado transformou-o numa usina de desastres 

A doutora Dilma tem dois chanceleres, um no Planalto e outro no Itamaraty. Apesar disso, restou ao Brasil uma diplomacia trapalhona, cenográfica e inepta. A desova do senador Roger Pinto no território brasileiro transformou uma conduta inamistosa do governo da Bolívia numa estudantada brasileira. Custou o lugar ao chanceler Antonio Patriota. Ele vai para Nova York, mas o comissário Luís Inácio Adams continua advogado-geral da União. O doutor sustentou que, caso um médico cubano peça asilo territorial no Brasil, será devolvido a Cuba. Agradando o aparelho dos irmãos Castro, ofendeu a história do país e o direito. No ano passado, o Brasil meteu-se noutra estudantada, expulsou o Paraguai do Mercosul e agora corteja seu governo. É uma diplomacia de palavrório e negócios. Patriota foi um detalhe.
A ideia segundo a qual o encarregado de negócios do Brasil em La Paz contrabandeou o senador até a fronteira com o Brasil porque apiedou-se de seu estado emocional é pueril. Se os embaixadores começassem a ser orientados pelos seus sentimentos, seria melhor fechar a Casa. A boa norma determina que um governo dê o salvo-conduto a um asilado em algumas semanas. No exagero, alguns meses. O presidente Evo Morales não quis fazer isso. Direito dele. O político peruano Haya de La Torre ralou cinco anos numa sala da embaixada da Colômbia em Lima. O cardeal Jozsef Mindszenty, outros 15 na embaixada dos Estados Unidos (que não são signatários das convenções de asilo diplomático) na Hungria.
Se alguém pensou que combinou a fuga com Evo Morales, fez papel de bobo e transformou o algoz em vítima. Transferiu o vexame para o diplomata Eduardo Saboia, deixando-o numa posição de franco-atirador. Coisa parecida fez no mundo dos negócios, quando transferiu para o embaixador do Brasil em Cingapura uma transação meio girafa que favorecia os interesses do empresário Eike Batista.
A maneira como a diplomacia de Lula e da doutora lidaram com o instituto do asilo revela desrespeito histórico com um mecanismo que protegeu centenas de brasileiros perseguidos por motivos políticos. Ele ampara gregos e troianos. Em 1964, brasileiros asilaram-se na embaixada boliviana. Anos depois, oficiais golpistas bolivianos asilaram-se na embaixada brasileira e o governo esquerdista do general Juan José Torres deu-lhes salvo-condutos em 37 dias.
Carlos Lacerda asilou-se por alguns dias na embaixada de Cuba e João Goulart pediu asilo territorial ao Uruguai. Em poucos meses, o governo do marechal Castello Branco concedeu salvo-condutos a todos os asilados que estavam em embaixadas estrangeiras. Já o do general Médici, vergonhosamente, fechou as portas de sua representação em Santiago nos dias seguintes ao golpe do general Pinochet e dezenas de brasileiros foram obrigados a buscar a proteção de outras bandeiras. Contudo, nem mesmo Médici deportou estrangeiros para países onde poderiam ser constrangidos. Isso ocorreu durante a gestão do comissário Tarso Genro no Ministério da Justiça, com dois boxeadores cubanos que, posteriormente, voltaram a fugir da ilha.
O direito de asilo é uma linda tradição. Não se deve avacalhá-lo.

segunda-feira, 26 de agosto de 2013

Pacto social quebrado

Susto e alerta
Autor(es): Cristovam Buarque
O Globo - 26/08/2013

A cena dos vereadores do Rio de Janeiro pedindo permissão aos jovens manifestantes para reunirem-se no plenário da Câmara Municipal foi mais enfática para mostrar a nossa instabilidade política do que as grandes manifestações do mês de junho. Mas a reação das direções políticas tem sido comparável à de uma pessoa que ao caminhar em direção a um abismo ouve um grito e se assusta, mas continua no mesmo rumo, sem perceber que era um alerta. Os sustos despertam, mas nem sempre alertam. Houve reação. No primeiro momento, o governo propôs pactos confusos e sobre temas superficiais. O Congresso Nacional se reuniu para uma chamada agenda positiva, onde alguns poucos projetos foram debatidos sem qualquer consequência para o pacto social que está rompido. Por omissão, insensibilidade, perplexidade ou impossibilidade de mudar o caminho, todos continuaram na mesma marcha em direção a um futuro repleto de instabilidade. As poucas grandes manifestações no país com pauta variada foram substituídas por muitas manifestações pequenas com propósitos específicos. Como são específicas e contra alvos determinados, as lideranças políticas não se afetaram e voltaram à lenta passividade do dia a dia à espera das próximas eleições. Agem como se as manifestações fossem apenas contra um governador e não contra o que ele simboliza como imagem de toda a política. Até o mês de junho, a sociedade funcionava apesar do quase colapso da segurança e do trânsito, do tamanho da desigualdade, da péssima qualidade nos serviços de saúde e educação e da imoralidade da corrupção. Apesar do descontentamento, a parte da população beneficiada e a parcela sacrificada conviviam, aceitavam-se, produziam e esperavam. O grau de desigualdade no acesso aos serviços públicos e a sua ineficiência fizeram "cair a ficha" na população, especialmente contra a classe política. Além de ser vista como responsável pelos erros é vista como privilegiada e tolerante com a corrupção, sem diferenciar os partidos. Esta "queda da ficha" levou a uma quebra do pacto social, que acontece simultaneamente com a percepção do poder de mobilização oferecido pelas redes sociais, provocando uma guerrilha cibernética, capaz de incomodar e de dar visibilidade às várias pautas sociais. A partir de agora, qualquer pretexto provocará manifestações de centenas de pessoas, ou mesmo de apenas dezenas, mas todas capazes de parar o funcionamento do tecido social e seus serviços, de servir de grito de alerta e de exigir um novo pacto social que vai precisar de substanciais concessões da elite para melhorar a qualidade de vida do público e dos serviços públicos, a fim de reduzir a desigualdade e eliminar a corrupção. Mais do que um susto, as lideranças precisam sentir o alerta e buscar novos caminhos que reconstituam o pacto social, em um novo patamar de eliminação de privilégios e desigualdades.

Ao arrepio da lei


[A lei estipula que qualquer médico diplomado no exterior tem de obrigatoriamente submeter-se ao teste  Revalida. O governo todavia nega-se a seguir a legalidade e procura impor sua decisão via Medida Provisória]

Folha de S. Paulo, 26 de agosto de 2013-- editorial

Crise dos médicos

Atrapalhou-se outra vez o governo federal na condução do programa Mais Médicos. Agora, no anúncio de que pretende importar 4.000 profissionais de Cuba para suprir a carência em periferias e regiões distantes das grandes capitais do país.
No dia seguinte à celebração do acordo entre as duas nações, intermediado pela Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), o Ministério Público do Trabalho declarou que abrirá inquérito para apurar irregularidades na forma de contratação escolhida pela presidente Dilma Rousseff.
Diante do desinteresse dos médicos locais em preencher as vagas mais remotas, é bem-vindo o esforço de trazer profissionais do exterior. Deveria ser óbvio, no entanto, que tal iniciativa não pode ser conduzida ao arrepio da lei.
O programa Mais Médicos prevê remuneração mensal de R$ 10 mil --independentemente da nacionalidade-- para esse atendimento às populações marginalizadas.
Com os cubanos, a contratação não se dará de forma direta. As verbas serão pagas ao regime castrista, que então repassará um percentual aos médicos em território brasileiro. Trata-se, portanto, de terceirização da atividade (proibida por lei) e discriminação entre os cidadãos de Cuba e os demais participantes do programa.
Não se pode afastar também o temor de que os cubanos tenham remuneração inferior ao salário mínimo brasileiro, hoje em R$ 678. Quando atuam no próprio país, não ganham mais de R$ 100 por mês. Os que atuam na Venezuela recebem cerca de R$ 550.
É, em todo caso, inadmissível que o governo federal contrate médicos sem saber quanto os profissionais de fato receberão pelo trabalho prestado.
Há razoável distância, no entanto, entre os problemas legais do acordo e a acusação de que configuraria trabalho escravo, como fez o presidente da Federação Nacional de Médicos, Geraldo Ferreira.
Além de salários aviltantes, seria preciso haver condições degradantes, jornada exaustiva, trabalho forçado e servidão por dívida para configurar trabalho escravo. Tais elementos não estão presentes.
A crítica do Conselho Federal de Medicina é mais pertinente. Para a entidade, o convênio com Cuba seria uma medida eleitoreira.
No afã de obter resultados políticos positivos na área da saúde, o governo Dilma cometeu grave equívoco. Atropelar a legalidade apenas reforça os argumentos daqueles que, movidos pelo corporativismo, sempre se opuseram à importação de médicos ao país.

domingo, 25 de agosto de 2013

"A democracia está em alto risco", diz Maria Helena Moreira Alves

[A entrevista completa de Maria Helena Moreira Alves]


Folha de S. Paulo, 25 de agosto de 2013.

UPPs são estado de exceção e ameaçam democracia, diz socióloga

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ELEONORA DE LUCENA
DE SÃO PAULO
Ouvir o texto
As Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) implantadas no Rio de Janeiro são ocupações militares e significam um estado de exceção que ameaça a democracia. A avaliação é da socióloga Maria Helena Moreira Alves que está lançando no Brasil "Vivendo no Fogo Cruzado", livro que traz um ácido relato sobre o cotidiano de violência policial nas favelas cariocas.
Doutora em ciência política pelo Massachusetts Institute of Tecnology (EUA) e professora aposentada da Universidade Estadual do Rio de janeiro, ela morou durante seis meses em três diferentes favelas entre 2007 e 2008. Ouviu moradores, lideranças, pesquisadores e políticos (como FHC, Lula e Cabral). A obra, escrita em parceria com o professor de história Philip Evanson, defende uma mudança no modelo policial.
"Imagine o Bope chegando num apartamento no Leblon, arrombando a porta e entrando com metralhadora! É inimaginável na Zona Sul, mas acontece todos o dias nas regiões que estão sob as UPPs", diz Maria Helena, 69, à Folha.
Nesta entrevista, ela afirma estar preocupada com a expansão do modelo de exceção nas cidades da Copa. Fala de milícias, currais eleitorais e corrupção policial: teme que o Rio vire uma Colômbia. E afirma que o caso Amarildo mostra que a violência estava escondida na comunidade, que agora começa a reagir.
Folha - No seu livro a sra. fala do crescimento do número de desaparecidos no Rio. Por que o caso Amarildo galvanizou a opinião pública?
Maria Helena Moreira Alves - São cinco mil desaparecidos por ano. O caso Amarildo chama muita atenção porque a Rocinha foi uma espécie de vitrine do governo da pacificação. Colocaram a UPP, a Rocinha virou um ponto turístico. Em lugar estratégico, era o exemplo maior do sucesso da UPP. Mas a violência estava escondida. De repente, uma pessoa que não tem nada a ver é presa, levada pelos policiais da UPP. Amarildo está desaparecido há mais de um mês. Primeiro a polícia disse que família trabalhava com tráfico. Pegou muito mal isso, tentar colocar a culpa na vítima. Estavam ameaçando a família. Denunciar é um ato de extrema coragem para quem está lá dentro. A solidariedade entre todos é que os faz sobreviverem.
O caso Amarildo e os ataques ao AfroReggae colocam em xeque a política de UPPs?
Terminamos o livro quando estavam começando as UPPs. Mas já dava para ver o ia ser. O modelo da UPP não é o modelo da policia comunitária. É uma invasão militar, com cerco da comunidade e permanente ocupação do território. Com todo dia os policiais saindo com metralhadora, andando pelos becos e muito abuso de autoridade. Primeiro fazem a invasão com o Bope, esperando guerra. Em geral morre gente. Recentemente foi na Maré, quando tentaram fazer uma UPP e não conseguiram. Houve uma chacina de dez pessoas. Foi uma convulsão enorme. Eles desistiram de fazer a UPP por causa da reação popular.
A UPP não tem apoio nas comunidades?
As comunidades estão começando a perder o medo um pouco para falar a verdade. No começo, tinham muito medo. Quando estava pesquisando para o livro uma pessoa me disse: silêncio não quer dizer aprovação. Hoje há muita reação e comoção nas comunidades. Estão organizando passeatas, se juntando com o pessoal que foi para a rua, tendo apoio da classe média. [Os policiais] arrombam as casas, metem o pé na porta, forçam as mulheres a cozinhar para eles, as chamam de vagabundas. É permanente isso. As comunidades foram ocupadas por um grupo militar, o Bope, que é treinado para matar.
Onde há UPP existe um estado de exceção?
Existe um estado de exceção declarado. Isso não é interpretação, é fato. Vários direitos civis são suspensos. As pessoas são revistadas, a polícia entra e sai das casas como quer. Se suspeitam de alguém, levam embora, como foi o caso de Amarildo. Não existe direito a advogado, dizem logo que é traficante. A polícia faz coisas que jamais faria em Ipanema, Copacabana e Leblon. Imagine o Bope chegando num apartamento no Leblon, arrombando a porta e entrando com metralhadora! É inimaginável na Zona Sul, mas acontece todos o dias nas regiões que estão sob as UPPs, que estão de baixo de um cerco militar. E é grave que esse modelo esteja sendo considerado para o inteiro: a lei da Fifa vai declarar estado de exceção temporário em todas as cidades onde vai haver jogo. O estado de exceção quer dizer suspensão do direito constitucional. Isso foi o que foi feito na ditadura militar.
Mas as UPPs não trouxeram mais segurança, valorização das casas, mais consumo? Não existe algo bom nelas?
A ideia era o projeto do Pronasci (Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania), que é excelente. Estabelecia policiais treinados para conviver com a comunidade, não seria militarizado, não teria arma letal. Sem "caveirão", sem metralhadora e sem fuzil. Junto existiriam programas sociais, culturais e de esporte, também de treinamento e capacitação para emprego. Ficou só a parte militar, o resto foi sendo cortado. Foi criada esperança, houve apoio, mas mudou. As comunidades estão cada vez mais críticas, participando. Nas passeatas se vê faixas dizendo: "As mesmas pessoas que batem em vocês são as que matam na favela".
As UPPs vão fracassar?
Parte da classe média e da classe alta apoia, porque a favela fica cercada pelos militares, para não ter crime. Mas isso também é falso, porque homicídio e roubo na Zona Sul aumentaram. A opinião dessas classes está muito dividida. Há os que dizem que quem está contra a UPP está a favor da criminalidade. Nada a ver. Critico a UPP porque é um modelo militar violento, em cima de gente que não pode se defender, que tira os direitos civis e constitucionais das pessoas. Sou a favor de uma polícia comunitária com respeito aos direitos civis de todas as pessoas.
Mas como fazer isso em zonas controladas pelo tráfico?
O controle do tráfico é discutível. Na entrevista que deu para o livro, o secretário José Beltrame diz que o tráfico organizado não está nas favelas. O crime organizado está fora delas. Dentro há o microtráfico. Os chefões não moram na favela. Ser contra a invasão militar não quer dizer ser a favor do tráfico. Se pode lidar com a criminalidade dentro da Constituição. Nova York fez isso. Não se pode lidar com a criminalidade reprimindo a comunidade inteira. Tem que ter inteligência, capacitar a polícia para buscar quem são os chefes, ir atrás da corrupção. A polícia é muito corrupta.
No livro está dito que a maioria dos policiais do Rio é corrupta. Pode ser?
Não tem a menor dúvida. Policiais honestos estão sendo ameaçados e dizem que têm mais medo dos colegas do que do tráfico. Porque podem ser mortos por colegas, se não entram no esquema da corrupção.
A corrupção está piorando ou melhorando na gestão Sérgio Cabral?
Está chegando a um ponto absolutamente crítico. Porque agora tem uma junção de milícia com bandido e com o controle da polícia nas áreas. O comando da venda de gás, do gatonet, das vans está sendo feito agora pelas milícias. São mais de 720 comunidades com milícia. Com as UPPs ficou muito fácil para as milícias se juntarem. Como os policiais não são honestos, eles ficam com o controle, fazem seus arranjos, um dá dinheiro para o outro. Tem um termo aqui que é "arrego, pedir arrego". Por exemplo, não pode ter baile funk se não pagar as polícias. Quem for contra morre.
As UPPs não afetaram o tráfico?
É difícil saber. Afetou o tráfico pequeno, que está ali presente. O grandão tá fora da favela e continua funcionando igualzinho inclusive pela junção com políticos. É uma rede muito complexa. Está ficando muito parecido com a Colômbia; é esse o meu grande medo. Está afetado tudo. Veja o caso da juíza Patrícia Acioli, que teve a coragem de prender PM. Foi assassinada ao meio dia. Isso acontecia na Colômbia com frequência.
As UPPs não têm o apoio da população em geral?
A classe média e a alta aceitam e gostam [dessas medidas], mas isso pode dar apoio a uma nova ditadura. Quebra a Constituição. Estado de exceção não pode conviver com estado de direito. Ou se tem direito para toda a população, ou se começa a fazer quase como um buraco dentro da areia, onde alguns não têm direitos e são [vistos como] danos colaterais. O estado de direito democrático vai sendo minado e, no fim, não se tem mais democracia.
A democracia está em risco nesse processo?
A democracia brasileira está em alto risco. E tem coisas muito parecidas com 1964. Tem gente apoiando, achando ótimo. É aquela historia: está pegando o meu vizinho, mas não a mim, que não sou comunista nem favelado. Mas vai pegando todo mundo. Agora já estão batendo na classe média em plena Cinelândia. Enquanto era só favelado, o pessoal aplaudia: "Mata no Alemão, bate, faz o que quiser". Ninguém queria saber. Agora já esta diferente.
Temos que formar uma sociedade baseada em leis para todos. Não dá para ter leis que funcionam para alguns e não para outros. Enquanto tivermos uma situação em que existem direitos para alguns e não para outros, não há Constituição e democracia de verdade.

No livro, a sra. diz que a favela é a senzala do século 21 e que os ricos da Zona Sul podem ser comparados a antigos senhores da casa grande. Mas isso não está mudando?
Meu irmão era o Márcio Moreira Alves (1936-2009). Minha família tinha apoiado o golpe. Quando começaram a aprender os estudantes de classe média alta, mudou. Quando pegaram o meu irmão, minha mãe virou uma das maiores combatentes contra a ditadura. Está acontecendo um pouco isso. Enquanto estavam reprimindo só a população das chamadas "classes torturáveis" para usar uma expressão de Graham Greene citada por Paulo Sérgio Pinheiro no prefácio do meu livro, ninguém falava nada. Por isso fiz a comparação com senzala e casa grande: enquanto é escravo e classe torturável, tudo bem vem trabalhar na minha casa, volta para a tua favela, eu não quero saber o que acontece lá. Quando começam a prender os filhos da classe média e alta a coisa muda. Por isso a popularidade do Cabral despencou. Mas ainda está muito dividido.
No livro a sra. trata dos tentáculos do tráfico e das milícias na política. Como está isso?
Os currais eleitorais são muito graves para a democracia. Já se infiltraram não só na Câmara de Vereadores, mas na Assembleia Legislativa, no Congresso. Eles têm uma política de eleger pessoas e também formar para o judiciário. Está ficando parecido com a Colômbia. Exemplo. Tem milícia vinculada à polícia numa comunidade fechada ocupada militarmente. Vem o programa social que requer o cadastramento das famílias. Na hora da eleição, eles batem armados na porta das pessoas e dizem: o voto é livre e secreto, mas nos gostaríamos que o nosso candidato tivesse tantos votos. Se não tiver tantos votos para milícia naquela zona eleitoral, a família esta perdida. Tem que ir embora do local ou votar como querem. É muito mais eficaz do que como faziam os coronéis.
A sra. também fala dos cemitérios clandestinos. Eles continuam existindo?
Não são tão clandestinos. As comunidades sabem onde ficam e já levaram a Anistia Internacional, a ONU. O problema é que ninguém faz nada sobre isso. São áreas onde não vigora a lei.
Na sua convivência nas favelas, o que foi mais chocante?
Ter descoberto o uso da faca corvo, que foi usada na Operação Condor. Com a faca se abre a barriga, tira as vísceras e o corpo afunda e ninguém nunca mais acha. Nem é mais preciso ter cemitério clandestino. Se joga no mar. É uma explicação para o número de desparecidos. A gente viu [a faca] nos desenhos das crianças, achamos uma e colocamos a foto no livro. Isso é gravíssimo. Estão usando a mesma maneira que Pinochet, a Argentina, o Paraguai, o Brasil usaram para fazer desaparecer os corpos nos piores períodos das ditaduras.
A sra. se sentiu ameaçada?
Eu me sinto ameaçada agora. Pensei em não fazer um lançamento público [que será em 28/8 na OAB/RJ]. Tenho uma proteção que é o fato de eu ser da classe alta. Recebi ameaças quando estava no Chile, telefonemas. Uma vez mataram duas cachorrinhas que a gente tinha e botaram um bilhete dizendo que era para eu saber que podiam chegar na minha casa. Eu estava no meio dessa história desse livro.
O que a impressionou no tempo em que passou nas favelas (ela não identifica os locais por razões de segurança)?
Positivamente, foi a solidariedade forte. É motivo para eles não querem sair das favelas. Estão lutando contra remoções. Lá têm apoio de seus vizinhos em tudo.
No livro, a sra. questiona a tese de que o Rio é uma cidade partida. Por quê?
A percepção que a cidade é partida tem uma parte de verdade: só nas periferias se faz UPP e cerco militar; não se faz na zona sul. Mas ela não é partida no sentido da dependência econômica e social. Se não houvesse gente da favela que vai trabalhar barato, a economia do Rio seria diferente. A lei das domésticas fez a classe média ficar furiosa. Ainda tem muita essa mentalidade no Rio, onde a nossa historia de escravidão é muito mais profunda. Posso falar isso porque meu tataravô, o Visconde de Rio Preto, era dono escravos. Tinha milhares deles em várias fazendas de café. Minha mãe sempre lutou contra a mentalidade escravocrata.
A sra. afirma que a política de segurança pouco mudou apesar dos diferentes governos da redemocratização. Por quê?
Porque a Constituição manteve a PM militarizada. Uma das sugestões da ONU é essa: abolir a PM e ter uma polícia mais consequente, civil. No Brasil não é tão simples fazer isso porque está tudo muito misturado com a corrupção geral. Seria um passo importante, mas não sei se é possível. Teríamos que ter políticos de muita coragem e de muita honestidade. Os governadores estão muito interessados em ter a PM, um exército, sob o controle deles. Isso é uma situação perigosa para um país democrático federativo. A Dilma poderia trazer o Pronasci de volta, que ela abandonou.
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Regime pretensamente democrático

Amarildos, onde estão?


‘Há uma forte demanda por transparência em questões relacionadas à polícia nos territórios da pobreza, onde as vidas estão constantemente sob risco’, afirma sociólogo


24 de agosto de 2013 | 17h 15
 
 
Juliana Sayuri - O Estado de S. Paulo
 
Amarildo de Souza desapareceu. 47 anos, uns 1,70 de altura, negro, pedreiro, casado, irmão de 11, pai de 6, morador da favela da Rocinha. Amarildo descamisado, vestindo apenas bermuda e chinelos, foi levado por policiais para a UPP na noite do domingo 14 de julho. Sumiu.
Manifestação da ONG Rio de Paz sobre milhares de desaparecidos no Estado - Marcos de Paula/Estadão
Marcos de Paula/Estadão
Manifestação da ONG Rio de Paz sobre milhares de desaparecidos no Estado
 
Assim como o pedreiro, milhares desapareceram no País pós-ditadura. Só no Rio foram mais de 10 mil amarildos mortos entre 2001 e 2011, em circunstâncias com policiais que nunca foram esclarecidas. "Amarildo é ‘só’ mais um. O caso foi catapultado pelas manifestações de junho, conquistando essa visibilidade. Mas, tradicionalmente, as classes médias não se interessam pelo que acontece nas favelas", critica o sociólogo Luiz Antonio Machado da Silva, professor do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e professor aposentado do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). "Por isso, os movimentos sociais são importantíssimos. Estão tentando abrir a caixa-preta da polícia", arremata o autor da coletânea Vida sob Cerco: Violência e Rotina nas Favelas do Rio de Janeiro (Editora Nova Fronteira, 2008).
Aos 72 anos, o sociólogo dedicou sua trajetória intelectual a estudos pioneiros sobre favela, sociabilidade e violência. Do Rio, Machado conversou com o Aliás.
A OAB-RJ lançará uma campanha pelo esclarecimento de mortes registradas como ‘autos de resistência’ pela PM. Seriam mais de 10 mil ‘amarildos’ mortos no Rio entre 2001 e 2011. Como o sr. analisa a iniciativa?
Isso mostra que há uma demanda forte por transparência quanto a questões relacionadas à polícia. Não só nas favelas, mas em todos os "territórios da pobreza", onde as vidas estão constantemente sob risco: nos loteamentos irregulares, nas ocupações, nos viadutos. Responde a uma demanda das ruas, mas não só das ruas. Uma vez incorporada à OAB, com toda sua legitimidade institucional, a iniciativa traz um ar de novidade, pois, tradicionalmente, os setores dominantes da sociedade não têm se importado muito com o funcionamento de instituições repressivas como a polícia. Essa iniciativa dá publicidade ao questionamento do funcionamento da polícia - e esse número de autos de resistência já sugere a tendência violenta dessa corporação.
O slogan da campanha será ‘Desaparecidos da Democracia’, enquanto ainda ronda o fantasma dos desaparecidos da ditadura. Que diferença sensível há entre eles?
Não gosto muito dessa aproximação. Sei que se trata de um slogan, mas, analiticamente, não é uma aproximação certeira. Na ditadura, eram desaparecidos diretamente políticos, que questionavam a ordem institucional e o Estado - e que foram jogados no mesmo saco dos criminosos comuns após a Lei de Segurança Nacional. Os desaparecidos atuais simplesmente não são desaparecidos "da democracia", mas de uma democracia limitada a apenas certos segmentos da sociedade. Esses desaparecidos são segregados, pois são os próprios processos do regime pretensamente democrático que produzem essa periferia marginalizada da cidadania. Isto é, a cidadania lhes foi negada. Desapareceram pela atuação ilícita dos aparelhos do Estado, de facto e não de direito.
Um caso emblemático de desaparecimento forçado pós-ditadura é a chacina de Acari, de 1990. As mães desses jovens, mobilizadas, abriram caminho para novas formas de protestos políticos contra a violência do Estado. De lá para cá, o que mudou?
Acari foi um dos casos mais dramáticos, mas houve outras chacinas: Candelária, Nova Iguaçu, Vigário Geral. Há milhares de casos simbólicos de desaparecimento e de violência. E é interessante observar as reações na opinião pública, pois ainda é forte o desinteresse da maior parte da sociedade em relação a esses acontecimentos. Acari produziu reações orgânicas com a mobilização das mães, mas com visibilidade e impacto pequenos. Ainda é muito inexpressiva a solidariedade da opinião pública aos "territórios da pobreza", principalmente por parte da classe média e das instituições. Tradicionalmente, a classe média não se interessa pelo que acontece nas favelas. Por isso, os movimentos sociais são importantíssimos. Não apenas como formas de resistência, mas como tentativas concretas de transformações.
Por que o desaparecimento de Amarildo conquistou tamanha repercussão? Por que ‘esse’ Amarildo?
Pois é. Esse é o ponto. Amarildo é "só" mais um, entre tantos milhares de desaparecidos. Mas essa visibilidade é muito recente. O caso foi catapultado pelas manifestações nas ruas. Só assim conquistou essa dimensão. Estou fortemente desconfiado de que o caso atrai diferentes vertentes. Por um lado, há uma recusa da institucionalidade. A classe média "cansou" dos desmandos ilícitos dos aparelhos do Estado. Por outro, uma vertente pede mais institucionalidade, isto é, pede que a polícia cumpra seu papel e realmente defenda a sociedade. Não há um movimento unificado, caminhando numa direção única. Os lados pedem mais transparência na polícia, mas isso adquire diferentes sentidos entre as classes populares e a classe média no Rio. São diversificados. Afinal, a rua pertence a todo mundo - e não pertence a ninguém. Fato é que os movimentos sociais estão tentando abrir a caixa-preta da polícia, o que pode respingar responsabilidades. É preciso demonstrar, concretamente, que a polícia tem seus rompantes de excesso de violência e atividades ilícitas. Demonstrações como fez a cobertura alternativa da Mídia Ninja, por exemplo. A violência policial provocou um efeito bumerangue nas manifestações, em São Paulo, Recife, Rio. Por arrogância ou por esquecimento da nossa democracia morena - como Brizola dizia sobre o socialismo moreno -, os governadores desaprenderam lições históricas e deram esse tiro no pé. A repressão deu outra dimensão às manifestações. E aí entrou Amarildo.
A violência urbana tem um caráter específico no Rio?
A violência urbana não é um fenômeno carioca, tampouco brasileiro. É mundial. Mas as histórias presentes na violência urbana são singulares em cada cidade, em cada país. No Rio, minha praia, a compreensão coletiva e cotidiana da violência tem muito a ver com uma hiperpolitização da questão da segurança pública. O imbróglio começa na década de 1980. A Lei de Segurança Nacional, de 1983, produziu uma aproximação entre criminosos comuns e políticos. Uma lei de defesa do Estado, não da sociedade. Isso provocou um aumento da violência para além da violência policial em defesa do Estado. Quando iniciou sua campanha para o governo do Rio, também em 1983, Leonel Brizola se reuniu com líderes das favelas. Fez um acordo: se eleito, as operações policiais (brutais, que subiam barbarizando os morros, sem distinguir bandido e trabalhador) seriam suspensas. Mas, à época, já rolava a violência relacionada às drogas e às facções. Os brizolistas queriam mais transparência, mais legalidade nas questões relacionadas à polícia. Oposição e classe média, porém, interpretaram esse acordo como uma defesa da criminalidade no Rio. Isso hiperpolitizou a questão. A polícia já estava habituada a exercer uma violência brutal contra as classes populares e os pobres. É a criminalização da pobreza. Aí a sociedade, principalmente a classe média, delegou o "trabalho sujo" a essa polícia. Para estudar o controle da criminalidade contemporânea no Rio, uso a ideia de "sociabilidade violenta". É como um mundo em si próprio, com regras ancoradas numa relação de forças. De quem pode submeter o outro pela força. Por exemplo, se tenho um AR-15, submeto quem só tem um 38. Quem tem um 38 submete quem só tem uma faca. Quem tem uma faca submete quem só tem os punhos. E por aí vai.
Em São Paulo, oficiais foram flagrados espancando adolescentes na Fundação Casa. A violência contra ‘marginais’ é tolerada?
A sociedade brasileira é extremamente tolerante nisso, quer dizer, aceita a violência física, muito mais que outros países. A sociedade legitima muitas formas de violência. Obviamente, precisaria de uma biblioteca inteira para justificar historicamente essa ideia. Mas é certeira, como horizonte de referência. Esse reconhecimento também está presente nas classes populares. Aliás, o mundo popular não é uma maravilha, não. Tem tanta sujeira quanto o mundo das elites. Estou convencido, e isso a partir de informações empíricas e estudos realizados, de que muitas sociedades não questionam a prática da violência em si. Questionam a indiscriminação da violência física praticada pela polícia. Por isso, a distinção moral sobre a violência policial vem sempre escoltada por ressalvas: a polícia bateu nesse cara, mas... esse cara é estudante, pai de família, trabalhador. Mas se a polícia bater num criminoso, ora, é como se fosse justificável. Nem precisa ser um criminoso do ponto de vista judicial, mas um cara que pratica atividades consideradas moralmente ilícitas. Quer dizer, quem atrapalha a vida dos outros tem que levar porrada. Isso não é admissível. Também Amarildo está nessa. Não importa se ele é criminoso ou não, se é trabalhador ou não. Nada disso justifica seu desaparecimento.
Amarildo era morador da favela da Rocinha. Como o sr. analisa a experiência da UPP ali?
As UPPs são uma claríssima mudança na conjuntura da política de segurança pública, da intervenção do Estado. Mas mudar implica outras questões. Mudar o quê? E até que ponto? Dá para dizer que mudou conjunturalmente, mas é a mesma polícia. A mesma corporação, a mesma estrutura. As UPPs mudaram dentro de seus limites, mas não se trata de uma reforma intelectual e moral da polícia, longe de uma desmilitarização da polícia.
A desmilitarização da polícia é necessária? E é possível?
Sim, é necessária abstratamente. Mas não é possível neste momento, pois não faz parte dos interesses dominantes. Além disso, a Polícia Militar e a Polícia Civil se digladiam e divergem em seus interesses. É uma luta a ser iniciada.
A família de Amarildo está pedindo a emissão da certidão de morte do pedreiro. É precipitado? Quando um desaparecimento passa a ser considerado uma morte?
É muito difícil, pois não há um corpo. Assim, há uma série de questões abertas para se poder dizer se foi um homicídio. Numa discussão da filosofia do direito, não dá para imputar ao desaparecimento a possibilidade de morte. Mas há uma outra dimensão, muito mais importante: a prática. Quer dizer, se as instituições derem um atestado de possibilidade de morte do pedreiro Amarildo, o Estado estará reconhecendo a autoria dessa morte por parte de seus agentes, pois a possível morte tem a ver com a interferência de policiais da UPP. Se o Estado formalizar isso, terá implicações judiciais stricto sensu e também políticas. É complicadíssimo.

Estado de exceção nas favelas cariocas

Folha de S. Paulo, 25 de agosto de 2013.

Maria Helena Moreira Alves, 69, Cientista Política
Favela com UPP vive estado de exceção
Especialista afirma que cidades que receberão a Copa também vão suspender direitos constitucionais
ELEONORA DE LUCENA DE SÃO PAULO As UPPs (Unidades de Polícia Pacificador) implantadas no Rio de Janeiro são ocupações militares e significam um estado de exceção que ameaça a democracia.
A avaliação é da cientista política Maria Helena Moreira Alves, 69, que lança no próximo dia 28, no Rio, "Vivendo no Fogo Cruzado", livro que traz um ácido relato sobre o cotidiano de violência policial nas favelas cariocas.
Doutora em ciência política pelo Massachusetts Institute of Tecnology (EUA) e professora aposentada da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, ela morou durante seis meses em três diferentes favelas entre 2007 e 2008. Ouviu moradores, lideranças, pesquisadores e políticos (como FHC, Lula e Cabral).
A obra, escrita com o professor de história Philip Evanson, defende mudanças no modelo policial. Na entrevista, ela fala de milícias, currais eleitorais e corrupção policial.
Folha - No seu livro a sra. fala do crescimento do número de desaparecidos no Rio. Por que o caso Amarildo galvanizou a opinião pública?
Maria Helena Moreira Alves - São 5.000 desaparecidos por ano. O caso Amarildo chama muita atenção porque a Rocinha foi uma espécie de vitrine do governo da pacificação. Colocaram a UPP, a Rocinha virou um ponto turístico. Em lugar estratégico, era o exemplo maior do sucesso da UPP. Mas a violência estava escondida.
O caso Amarildo e os ataques ao AfroReggae colocam em xeque a política de UPPs?
Terminamos o livro quando estavam começando as UPPs. Mas já dava para ver o que ia ser. O modelo da UPP não é o modelo da polícia comunitária. É uma invasão militar, com cerco da comunidade e permanente ocupação.
A UPP não tem apoio nas comunidades?
As comunidades estão começando a perder o medo. Quando estava pesquisando para o livro uma pessoa me disse: silêncio não quer dizer aprovação. Hoje há muita reação e comoção.
Onde há UPP existe um estado de exceção?
Existe um estado de exceção declarado. Isso não é interpretação, é fato. Vários direitos civis são suspensos. As pessoas são revistadas, a polícia entra e sai das casas como quer. Se suspeitam de alguém, levam embora, como foi o caso do Amarildo. Não existe direito a advogado. A polícia faz coisas que jamais faria em Ipanema, Copacabana e Leblon. Imagine o Bope chegando num apartamento no Leblon, arrombando a porta e entrando com metralhadora! É inimaginável na zona sul, mas acontece todos o dias nas regiões que estão sob as UPPs, que estão de baixo de um cerco militar. E é grave que esse modelo esteja sendo considerado para o país inteiro: a lei da Fifa vai declarar estado de exceção temporário em todas as cidades onde vai haver jogo. O estado de exceção quer dizer suspensão do direito constitucional. Isso foi o que foi feito na ditadura militar.
Não existe algo bom nas UPPs?
A ideia era o projeto do Pronasci (Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania), que é excelente. Estabelecia policiais treinados para conviver com a comunidade, não seria militarizado, não teria arma letal. Sem "caveirão", sem metralhadora e sem fuzil. Junto existiriam programas sociais, culturais e de esporte, também de treinamento e capacitação para emprego. Ficou só a parte militar, o resto foi cortado.
No livro está dito que a maioria dos policiais do Rio é corrupta. Pode ser?
Não tenho a menor dúvida. Policiais honestos são ameaçados e dizem que têm mais medo dos colegas que do tráfico. Porque podem ser mortos por colegas, se não entram no esquema corrupto.
A corrupção piora ou melhora na gestão Sérgio Cabral?
Está chegando a um ponto absolutamente crítico. Porque agora tem uma junção de milícia com bandido e com o controle da polícia nas áreas. O comando da venda de gás, do "gatonet", das vans está sendo feito agora pelas milícias. São mais de 720 comunidades com milícia. Com as UPPs ficou muito fácil para as milícias se juntarem.
UPPs não afetaram o tráfico?
É difícil saber. Afetou o tráfico pequeno, que está ali presente. O grandão está fora da favela e continua funcionando inclusive pela junção com políticos. Está ficando muito parecido com a Colômbia; é esse o meu grande medo. Veja o caso da juíza Patrícia Acioli, que teve a coragem de prender PM. Foi assassinada ao meio dia. Isso acontecia na Colômbia com frequência.
No livro a sra. trata dos tentáculos do tráfico e das milícias na política. Como está isso?
Currais eleitorais são muito graves para a democracia. Já se infiltraram na Câmara de Vereadores, na Assembleia Legislativa, Congresso. Têm uma política de eleger pessoas e também formar para o Judiciário. Está ficando parecido com a Colômbia. Exemplo: tem milícia vinculada à polícia numa comunidade ocupada. Vem o programa social que requer o cadastramento das famílias. Na hora da eleição, eles batem armados na porta das pessoas e dizem: o voto é livre e secreto, mas gostaríamos que o nosso candidato tivesse tantos votos. Se não tiver tantos votos para milícia naquela zona eleitoral, a família está perdida. É muito mais eficaz do que como faziam os coronéis.
Na sua convivência nas favelas, o que foi mais chocante?
Ter descoberto o uso da faca corvo, que foi usada na Operação Condor. Com a faca se abre a barriga, tira as vísceras e o corpo afunda e ninguém nunca mais acha.
A sra. afirma que a política de segurança pouco mudou apesar dos diferentes governos da redemocratização. Por quê?
Porque a Constituição manteve a PM militarizada. Uma das sugestões da ONU é essa: abolir a PM e ter uma polícia mais consequente, civil. No Brasil não é tão simples fazer isso porque está tudo muito misturado com a corrupção geral. Os governadores estão muito interessados em ter a PM, um exército, sob o controle deles.